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Dez anos depois, mais de um terço das obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo do Brasil não foi entregue

25.04.2024 | | Notícias do Mercado

Fonte: O Globo
Data: 24/04/2024

Dez anos após a Copa do Mundo do Brasil, mais de um terço das obras de mobilidade urbana prometidas por prefeituras e governos das cidades-sede do evento não foi feita. Os 38% não entregues incluem projetos abandonados ou concluídos parcialmente, a maioria de linhas de BRT ou VLT. Para especialistas, apesar de avanços pontuais, a Copa foi um potencial desperdiçado em termos de soluções de mobilidade.

Parte das promessas, que contavam com linha especial de financiamento do BNDES, foi retirada ainda antes do megaevento da Matriz de Responsabilidade (MR), documento que reunia todas as obras necessárias para o Mundial, incluindo projetos de estádios, mobilidade urbana, aeroportos, portos, telecomunicações, segurança, instalações complementares, energia e turismo. A mobilidade previa muitos projetos que, embora não fossem essenciais para o torneio, eram vistos como a chance de deixar um legado em cidades que precisaram investir milhões em infraestrutura.

Mas, sem a mesma prioridade das outras categorias, a mobilidade foi o setor com mais promessas descumpridas. O último relatório de balanço do governo federal é de 2017, quando houve estimativa de gastos de R$27,1 bilhões na realização do torneio, mas o site de transparência da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre o tema saiu do ar em junho de 2018. Por isso, falta transparência sobre todas as cifras.

Emergencialmente, houve projetos realizados mesmo sem previsão inicial na MR. Em 2022, o jornalista Rodrigo Lois atualizou os dados em seu projeto de pesquisa de mestrado pela FGV, e chegou a uma estimativa de que o evento teve investimento geral de R$ 31,2 bilhões: R$8,4 bilhões para mobilidade, o mesmo montante investido na construção de estádios.

Para o levantamento desta reportagem, O GLOBO se baseou no documento divulgado pelo Ministério do Esporte, com última atualização meses após a Copa, e consultou governos estaduais e prefeituras das 12 cidades-sede, além de informações do estudo de Lois.

Foram localizadas 75 obras de mobilidade, das quais 46 foram concluídas, três entregues parcialmente e 21 acabaram abandonadas, além de cinco ainda em execução. Do total prometido, 14 projetos foram retirados da matriz antes da Copa, pois não havia tempo para conclusão até o evento, mas metade teve prosseguimento e foi entregue anos depois. Em Manaus e Porto Alegre, os BRTs não viraram realidade, assim como os VLTs de Cuiabá e Brasília. Em Fortaleza, corredores foram abertos ou ampliados, mas sem o BRT previsto.

— Apesar de boas obras pontuais, o trânsito não foi resolvido. Foi um período desperdiçado para o Brasil inteiro — diz o arquiteto e urbanista Zeca Brandão, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que foi secretário executivo de Operações Urbanas do estado no planejamento para a Copa.

BRT entregue, mas “cidade da copa” esvaziada em Pernambuco

Então responsável pelo laboratório de arquitetura e operações urbanas da UFPE, Brandão foi convidado pelo ex-governador Eduardo Campos para assumir a secretaria que pensaria o planejamento urbano da região metropolitana com vistas à Copa do Mundo. Os principais gargalos a serem resolvidos eram a rede hoteleira e a mobilidade urbana. Para o trânsito, a primeira proposta foi de transporte fluvial pela rede de rios do Recife. O projeto foi contratado, mas depois paralisado por falta de viabilidade – Nos anos seguintes apenas subprodutos foram realizados, como dragagem que proporcionou à prefeitura lançar o Parque Linear Capiberibe.

A secretaria então propôs duas linhas de BRT, que foram entregues, além de outras intervenções como alargamentos de pistas e reformas de estações.

— Tínhamos planos que não chegaram a entrar na Matriz, como integração com a linha do metrô (de superfície) para facilitar o fluxo ao Centro, onde teria uma rede de VLT. Mas nada disso foi feito — explica Brandão, que lamenta também o desfecho da “cidade da Copa”, onde foi feita a Arena Pernambuco, numa região distante da capital e que atrairia a implantação de novos serviços e infraestrutura, mas o projeto concebido não se concretizou, apesar do estádio.

Manaus sem legado

Em Manaus, nem o BRT, da prefeitura, nem o Monotrilho, do governo estadual, saíram do papel. Além de disputas entre as gestões, as obras esbarraram nos altos custos, na necessidade de desapropriação e em problemas junto ao Iphan, devido ao traçado pelo centro histórico. As intervenções ficaram restritas a obras perto do estádio construído.

— Manaus até hoje não tem qualquer sistema de trem ou BRT. Somente sistema de ônibus, com alguma integração. Nas principais avenidas há muito congestionamento — resume Tais Furtado, arquiteta-urbanista da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que diz que o legado entregue se concentrou em obras no entorno do estádio construído. — A cidade em si não teve grandes mudanças. Diante da necessidade, não podemos chamar de legado.

Procurada, a prefeitura de Manaus afirmou que o projeto de BRT foi rejeitado pela Câmara e saiu da matriz. Prefeito à época, Arthur Neto culpou a falta de aportes federais.

VLT de R$ 1 bilhão abandonado em Cuiabá

Em Cuiabá fica o projeto abandonado mais caro: o VLT, que consumiu cerca de R$1 bilhão do orçamento de R$1,4 bilhão financiado pela Caixa Econômica na compra de 40 trens e 24 quilômetros de aço. Ele ligaria o Aeroporto Marechal Rondon, na cidade de Várzea Grande, ao centro de Cuiabá. Em 2020, o governo estadual trocou o projeto por um BRT, ao custo de R$ 480 milhões, enquanto o VLT ainda demandaria R$ 730 milhões.

O governo do Mato Grosso disse que a obra do BRT está em curso, com conclusão prevista para 2025. Já o destino dos vagões guardados no fundo do aeroporto ainda não foi selado. Em 2022, uma equipe da prefeitura do Rio foi até Cuiabá para estudar a compra. Ano passado, o governo da Bahia fez proposta pelos vagões, em negociação mediada pelo Tribunal de Contas da União.

Mudança de rota em Salvador

Em Salvador também houve substituição de projetos. O BRT prometido para a Copa do Mundo não foi feito. Em troca, o governo estadual construiu o metrô, quase todo passando acima da superfície, em trajeto semelhante, que liga o aeroporto ao Acesso Norte, uma estação intermodal da cidade.

— É um modal melhor, pela capacidade de atender à demanda. Mas como fizeram de forma apressada, sem planejamento, o metrô passa por um vazio urbano. O melhor seria ter o metrô no miolo da cidade. Salvador sofre de um grande problema que é a desarticulação de projetos entre poderes — explica Daniel Caribé, coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador, que é cético quando às reais condições de uso dos vagões que seriam comprados de Cuiabá.

Arquiteta e urbanista da UFBA, Any Brito lembra ainda dos danos sociais causados pela obra, assim como em outras cidades-sede, devido às “excepcionalidades” permitidas pela necessidade do evento, o que permitiu muitas remoções de moradores e gastos com pouca fiscalização.

— Houve um contrassenso à lei de licitações. Inovou-se no que diz respeito ao caráter da gestão urbana, um “legado” pouco considerado — afirma Brito, que considera à “pressa” na contratação do projeto do BRT como um exemplo dessa situação que se repetiu pelo país.

Obras inauguradas neste ano, em Porto Alegre

Em Porto Alegre há obras da Copa sendo inauguradas até agora, literalmente: duas semanas atrás, a prefeitura entregou a duplicação da Avenida Tronco, que custou R$ 83,2 milhões. Três meses antes, o prolongamento da Avenida Severio Dulius foi inaugurado. Mais uma vez, as intervenções viárias concluídas para o Mundial ficaram restritas ao entorno do estádio Beira-Rio. Procurada, a prefeitura explicou que vários projetos foram retirados da matriz por não terem relação direta com o evento.

O caso mais importante foi o abandono do projeto dos BRTs. Em 2018, a então prefeitura de Porto Alegre assinou um acordo com o governo federal para realocar os R$120 milhões de financiamentos previstos ao empreendimento para outros projetos, e até para pagamentos de dívidas de obras da copa. Na cidade, as intervenções viárias que ficaram prontas para a Copa foram basicamente no entorno do estádio Beira-Rio.

— A Copa do Mundo em Porto Alegre prometeu um legado maior do que entregou, principalmente porque as obras demoraram muito — afirma o jornalista e mestrando em planejamento urbano pela UFRGS Thiago Medina, que lembra que houve muitos protestos às vésperas do evento, principalmente por causa das remoções realizadas.

Conclusões parciais em Fortaleza e Natal

Em Fortaleza, o governo estadual entregou o VLT com quatro anos de atraso, além de duas estações para a linha do metrô. Das obras municipais, havia a previsão de cinco BRTs. Os modais não foram instalados, mas a prefeitura revitalizou, ou abriu, os corredores expressos, com duplicações ou segregações para faixa de ônibus. E o túnel de acesso à Arena Castelão é considerado o principal legado.

— Fizemos ajustes na matriz de projetos, conservando apenas aqueles projetos que seriam imprescindíveis para garantir a mobilidade durante o evento da Copa do Mundo e que trariam um legado para a cidade — explica Samuel Dias, Secretário da Infraestrutura de Fortaleza, que já era o titular da pasta na época e diz que outros BRTs foram priorizados.

Em Natal, o VLT foi concluído parcialmente: os veículos leves foram instalados, mas dentro da linha de trem que já existia. Somente em 2018 novos ramais foram instalados pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), mas nenhum dentro de Natal, apenas na região metropolitana. Outras obras foram abandonadas, como a abertura da Avenida Engenheiro Roberto Freire, e outras foram retomadas ou iniciadas apenas ano passado, como projeto de calçadas acessíveis e acesso viário ao aeroporto pela Zona Norte.

— Desde a fase preparatória, vários problemas surgiram, como dificuldades financeiras e necessidade de desapropriar terrenos e casas. Com exceção das obras mais diretamente ligadas à Copa, outras foram abandonadas ou atrasaram muitos anos — explica Alexsandro Ferreira coordenador do Instituto de Políticas Públicas (IPP/UFRN).

Brasília e São Paulo sem as linhas prometidas

Em Brasília, o VLT que ligaria o aeroporto à Asa Sul não foi feito e, em 2019, um novo desenho foi proposto. Procurada, a gestão local disse que o projeto está sob análise do Tribunal de Contas do DF. Já São Paulo foi a cidade-sede com menos promessas: intervenções no entorno da Arena Itaquera e o Monotrilho Linha-17 Ouro, não realizado. O governo estadual informou que, após “dificuldades contratuais”, retomou a construção da linha em setembro de 2023, e a meta é concluir em 2025.

Em Curitiba, a maior lacuna é o Corredor Metropolitano, que ligaria Curitiba a sete cidades da região metropolitana a um custo de R$130 milhões. A obra nunca foi feita e o governo estadual respondeu que o projeto foi retomado pela atual gestão e o primeiro trecho está em fase final de elaboração de projeto.

Das obras municipais, o BRT Candido de Abreu foi abandonado, antes mesmo da Copa, por causa do seu “elevadíssimo custo”, segundo a prefeitura. Já o BRT do Corredor Aeroporto – Rodoferroviária foi descartado e feito apenas o alargamento de alguns trechos. Segundo a prefeitura, a obra era sugestão do Ministério das Cidades, mas o custo era muito elevado e havia necessidade de desapropriação de 400 imóveis.

Rio e Belo Horizonte entregaram tudo

Rio e Belo Horizonte são as únicas que entregaram todo o prometido. Na capital fluminense, o BRT Transcarioca e obras perto do Maracanã. Já BH enfrentou atrasos em cinco dos sete projetos prometidos, concluídas após o evento.