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Dormentes e vagões inteiros de trem: como funciona um leilão da CPTM em SP

21.10.2021 | | Notícias do Mercado

Fonte: Uol
Data: 19/10/2021

Telefone analógico. Fio de cobre contaminado. Limalha de ferro. Disco de freio. Trilhos. Resíduo de óleo mineral isolante. Vagões de trens desativados. “Quem dá mais? Vendido por R$ 700”, anuncia Carlos Chui, um homem meio careca, na faixa dos cinquenta anos. É sua primeira vez liderando um leilão de sucata promovido pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

De polo preta, sapatos e jeans, demonstra receio de falar com a imprensa — no caso, a reportagem do TAB — mas perde a timidez ao ver o auditório repleto de interessados. Não é sempre que acontece. É comum que o leiloeiro fique sozinho no salão enquanto os interessados dão lances online. No auditório, cerca de vinte homens e uma mulher estão determinados a comprar lixo. Ou, como são descritos no edital, “itens inservíveis”, termo usado para designar objetos obsoletos que pelo uso prolongado não atendem mais à companhia.

Uma das frases mais repetidas por Carlos durante o evento é “Vai deixar pro online?”, uma tentativa de animar os interessados que estão no salão. São muitas as diferenças desse leilão para um leilão judicial. Uma delas é que não há impedimentos legais envolvendo os itens. É uma decisão administrativa que parte da própria empresa. “Aqui são commodities, é material de alto giro com percentual bem baixo”, explica Leandro Capergiani, gerente de Logística da CPTM. Acostumado a leilões do tipo, surpreende-se com as inúmeras perguntas da reportagem, mas concorda que é um tema curioso para quem não é do meio.

É quando a voz do leiloeiro toma conta do auditório. O ritmo faz toda a diferença, observa um dos participantes. Online, tudo fica mais desanimado.

Me chama que eu vou

As grandes disputas são pelos dormentes, um nicho de mercado. E o negócio é ligeiro. Os lances pelo lote com cinquenta e cinco pedaços de madeira passa de R$ 425,25 para R$ 495,25 em menos de trinta segundos. No online, um interessado dá um lance de R$ 500 mil por engano, forçando uma pausa. “É a ansiedade. Acontece”, explica um habitué. Várias das pessoas abordadas pela reportagem não quiseram dizer nome ou sobrenome.

O leiloeiro acalma a turma, corrige o valor e a disputa continua. Quando chega nos R$ 635, alguém cochicha que o lote vale um lance maior por causa da conversão da moeda. De centavos em centavos depois, vendido.

Um homem tímido, de boné azul, perde mais uma vez para duas figuras que chamam a atenção no auditório. São pai e filho, empresários do ramo de móveis que saíram de São João del Rei (MG) para a rodada na capital paulista. Ronaldo Oliveira, 58, é um coroa bonitão que frequenta leilão há 30 anos. O filho, Bruno, de 38, segue os passos do pai e frequenta esse tipo de leilão há cinco anos. Cada um tem sua empresa, mas dão lances juntos e preferem o formato presencial. “Vai que a internet não funciona na hora…”

Veteranos, os Oliveira não perdem tempo. Quando os lotes de dormentes se encerram, eles partem para assinar o cheque dos seus cinco mil itens arrematados. Pelos cálculos da reportagem, pagaram no mínimo R$ 400 mil pela matéria-prima que movimenta o nicho. Com o preço da madeira, saíram no lucro.

Com valor mínimo de R$ 1.456.000, os lotes 18 e 19 também chamam a atenção — cada um com 700 toneladas de trilhos usados, ou 1.400 toneladas que não servem mais para as vias de São Paulo, devido ao nível de desgaste. Como nada se perde e tudo se transforma, uma das possibilidades para quem adquire essa preciosidade milionária é a reutilização em rodovias de pequeno porte.

Calote em leilão

Tem todo tipo de gente no leilão de sucata. Grandes e pequenos empresários, acumuladores e até caloteiros. Gilson Vieira, 54, camisa estampada com coqueiros, arrematou três mil equipamentos de informática. É abordado discretamente por Reno, um dos assistentes do leilão, que pergunta pelo cheque. Simpático, Gilson responde que pagará na saída enquanto Reno explica à reportagem que é muito comum gente que dá lance, arremata e depois dá o famoso perdido. “Daí sobra pro leiloeiro”, justifica. Vera Rosa, 41, é a única mulher no salão. Dona de uma loja de informática na Santa Efigênia, está interessada no lote de sucata eletrônica e aguarda o lote de telefones analógicos para dar seu lance. Diferentemente de Maria do Carmo, personagem interpretada por Regina Duarte na novela “A Rainha da Sucata”, a empresária tem um visual discreto. Participa de leilões há alguns anos e prefere dar lances online. “Minha internet não estava legal, então decidi vir.”

Todos os presentes ali já chegaram determinados, sabendo o que queriam. Um deles é Frederico, apontado como o único interessado nos vagões do lote 44. Agitado, começa sentado numa cadeira na última fila. Sai várias vezes do auditório para beber água. Quando retorna, senta-se na segunda fileira, depois volta para a última. Abordado, confirma o interesse no lote, mas corta o papo. “Pode ser depois?”

Os vagões podem ser desmontados para serem reciclados ou usados em siderúrgicas. Há também quem aproveite a composição inteira para fazer lanchonetes ou comércio temáticos.

Se eu perder esse trem

Dei meu lance, comprei minhas coisas, e agora?

O comprador tem até cinco dias para pagar o leiloeiro que emite as notas. Após o registro de toda a documentação, são realizados os agendamentos para a retirada. Grande parte da sucata leiloada está no pátio de manutenção de trens. São centenas de caixas — uma delas, por exemplo, contem 13 toneladas de disco de freio. Para chegar perto de um dos veículos ferroviários, considerado a cereja do bolo do leilão, é preciso passar pela plataforma da linha 7, acima da Estação da Lapa. De lá para os trilhos da ferrovia são 3 km. Esse é o cenário que aparece ao fundo da cena do jogo de futebol do filme “O ano em que meus pais saíram de férias”, de Cao Hamburger, em 2006. Hoje, o clima é de cemitério.

Em meio aos trilhos com resquícios de veneno de rato, o TAB encontra o vagão da Série 1600. A cena é triste, mas tudo está limpinho. Composto de aço inoxidável, operou em seus últimos anos na Linha 7-Rubi e foi modernizado em 2009. Está parado há sete anos. No seu interior, não há mensagens nos painéis, bitucas de cigarro ou objetos esquecidos. Apenas assentos vermelhos, muita poeira e um mapa ultrapassado do transporte metropolitano, quando a linha 13-Jade, inaugurada em 2018, sequer existia. Quando circulava por aí, a linha 5-Lilás, que hoje vai do Capão Redondo até a Chácara Klabin, terminava no Largo 13. Outros tempos.

Num silêncio pouco usual em São Paulo, o trem descansa em frente a um muro pichado com a frase “Não jogar lixo”. Em um clima oposto ao do leilão animado, não há sinal de vida ali. Apenas o som de um helicóptero Águia.

Enquanto isso, no leilão que acontece no Centro, o lote com os vagões é anunciado. Sem lances na internet, Frederico, o único potencial interessado, fica em silêncio. É possível baixar o valor mínimo do trem no futuro? Ninguém se arrisca a dizer. Dos 101 lotes leiloados na sexta-feira (15), 90 foram vendidos e R$ 7,9 milhões arrecadados, mas os trens seguem sem um novo dono. Sinto muito, amor, mas não pode ser. Ainda.