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Operação shortline

09.03.2023 | | Notícias do Mercado

Fonte: Revista Ferroviária
Edição Janeiro/Fevereiro de 2023

Shortline é um termo norte-americano que, na tradução livre, significa ‘linhas curtas’. Esse modelo de operação ferroviária prospera nos Estados Unidos, onde pequenas e médias linhas independentes servem como alimentadoras das ferrovias estruturantes Classe 1. No Brasil ainda são inexistentes dentro desse conceito, embora necessárias diante de um volume significativo de ramais e linhas hoje inoperantes na malha brasileira. Mas há um movimento na direção de torná-las, enfim, uma realidade no país.

O tema foi indiretamente incluído na agenda regulatória de 2023/2024 da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O órgão pretende publicar, no próximo ano, as regras de chamamento público para interessados em assumir a operação de trechos ociosos/devolvidos pelas concessionárias. Paralelamente a isso, o Ministério dos Transportes tem em mãos um estudo que traça metodologias para o processo de devolução de linhas e escolha de alternativas de reutilização desses trechos. Os desafios para avançar com o tema, no entanto, são enormes e esbarram no próprio contexto ferroviário brasileiro.

O termo shortline começou a ser mais falado no Brasil com o surgimento do Projeto de Lei do Senado (PLS) 261, de autoria do senador José Serra, em 2018. Os debates no Brasil duraram cerca de três anos, quando, em dezembro de 2021, o projeto foi aprovado na forma da Lei 14.273, que instituiu o novo marco legal de ferrovias. O principal ponto foi a permissão das autorizações ferroviárias, inspirada no modelo norte-americano de ferrovias privadas e desregulamentadas, implementado na década de 1980 com a promulgação do chamado Staggers Rail Act, nos EUA.

Mas o novo marco dispõe também de uma seção específica para tratar de devoluções de ramais a pedido das concessionárias e prevê algo inédito: a possibilidade de o poder concedente iniciar um processo de chamamento público para buscar interessados em trechos concessionados que estejam ociosos. Até então, os pedidos de devolução estavam facultados apenas às concessionárias.

A regulação de todo esse procedimento é o que a ANTT vem trabalhando nos últimos meses. A intenção, a principio, é dar uma destinação para essa malha mediante autorização ao privado. A complexidade está no fato de que os trechos existentes são ativos públicos. Todo o processo vai passar por audiência pública antes de ser deliberado pela agência, explica o superintendente de Transporte Ferroviário da ANTT, Ismael Trinks.

Sem tráfego

A questão da malha inoperante é sensível no setor ferroviário. Dos 29.022 km de extensão da malha brasileira (sem considerar o tramo central da Norte-Sul), 7.076 km de ferrovias concedidas no país (24%) não apresentam qualquer fluxo de transporte. Agregando esses trechos àqueles que tem 70% ou mais de capacidade instalada não utilizada, chega-se a 64% da malha ou 18,5 mil km de linhas ociosas ou sem tráfego no Brasil.

Os dados são da ANTT, baseados na Declaração de Rede de 2020 (cujas informações são repassadas pelas próprias concessionárias), e foram citados num relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), emitido em julho do ano passado. O documentou identificou as falhas existentes no processo de devolução de trechos ferroviários e sugeriu melhorias regulatórias. As recomendações foram endereçadas ao Ministério – até então – da Infraestrutura, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e para a ANTT.

O assunto ganhou notoriedade (e um pouco mais de urgência) com a proximidade das renovações antecipadas dos contratos de concessão da Ferrovia Centro- Atlântica e da Rumo Malha Sul. Ambas, de acordo com dados fornecidos pelo TCU, apresentam percentuais elevados de trechos inoperantes ou ociosos – 75,8% de 7.860 km para a primeira, e 77,1% de 7.223 km para a segunda. É esperado um número significativo de devoluções com essas prorrogações.

No caso da FCA, o Tribunal estima, por baixo, que serão 1.751 km devolvidos. Na Malha Sul, pode chegar perto de 2 mil km. A renovação da FCA encontra-se em análise na ANTT, e a da Malha Sul teve qualificação aprovada no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. Ainda é preciso levar em conta a Malha Nordeste, sob concessão da Ferrovia Transnordestina Logística, que tem 3 mil km inoperantes, e a Malha Oeste, praticamente fora de operação e em relicitação.

O processo de devolução de trechos é tão complexo que inaugurou os trabalhos na recém- criada Secretaria de Administração Pública Consensual do TCU. O departamento foi implementado pelo atual presidente do Tribunal, Bruno Dantas, em dezembro do ano passado, com o objetivo de reunir agentes de órgãos reguladores, privados, governo e judiciário para discutir e definir soluções para gargalos em projetos de investimentos.

O primeiro pedido foi justamente o da ANTT, para buscar consenso no cálculo de indenização de um trecho de cerca de 90 km a ser devolvido pela Malha Sul, entre Presidente Epitácio e Presidente Prudente, em São Paulo. A divergência, nesse caso, se refere ao valor que está sendo estipulado pelo Dnit, considerado alto pela Rumo.

Redesenho da malha

O ponto crucial e que impacta diretamente na questão das shortlines são os estudos de viabilidade e das alternativas de reutilização de trechos devolvidos e ociosos. Ainda não está plenamente definido se eles serão desenvolvidos pelas concessionárias no ato da devolução dessas linhas e quais serão os critérios para destinação que se dará a elas. A palavra final é do governo federal.

O fato é que o modelo de operação de shortlines no Brasil passa pela necessidade de um redesenho da malha ferroviária, segundo o consultor da Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) e ex-diretor geral da ANTT, Bernardo Figueiredo. “É preciso estudar o mercado para cada linha hoje abandonada”, ressalta.

“Há trechos que podem não interessar grandes concessionárias, mas de repente para um pequeno ou médio operador logístico o frete remunera, numa operação mais simples e enxuta. Questão é que isso precisa ser estudado, não basta apenas ter a regulação do chamamento público. O governo precisa apresentar alternativas para atrair a iniciativa privada, que sozinha não vai fazer estudos, porque é algo novo e complexo para quem não é do mercado ferroviário. Quem está querendo hoje shortline? Não pode esperar que o mercado identifique essa oportunidade sozinho”, argumenta.

Outro ponto ressaltado por Figueiredo é a necessidade de se entender o que é linha estruturante e o que pode se tornar shortline no Brasil. O caso da Rumo Malha Sul é emblemático, uma vez que tanto linhas consideradas tronco quanto trechos menores estão ociosos ou completamente inoperantes. “Não adianta falar em shortline se não houver o serviço tronco funcionando. Elas dependem das linhas tronco para ampliar seu horizonte de mercado, ou seja, precisam extrapolar o limite delas. Teoricamente o modal rodoviário tem mais competividade quando a distância é menor que 500 km”.

Para o economista, coordenador de Economia Aplicada do IBRE/FGV e professor do Instituto de Economia da UFRJ, Armando Castelar, a competividade com o modal rodoviário pode ser uma pedra no sapato das shortlines brasileiras. “Ferrovias são competitivas frente ao caminhão em longas distâncias. E eu acho que o setor público no Brasil dá muita preferência à rodovia”, afirma. Ele reconhece, no entanto, que no futuro pode até existir espaço para shortlines greenfield, alimentadoras de ferrovias de grãos, por exemplo. Na sua avaliação, haverá espaço para esse modelo de operação na região Centro-Oeste, caso novos projetos estruturantes sejam construídos.

“Nas áreas densamente povoadas, com muita rodovia, mais tradicionais, com cargas leves, é mais difícil. Mas no Mato Grosso, Tocantins, acho que há espaço no futuro. Se houver Ferrogrão levando carga para o Arco Norte, podem surgir shortlines alimentando essa ferrovia. Na própria Norte-Sul já poderia existir, por ser uma espinha dorsal. A Fico, que está sendo construída entre Mara Rosa e Água Boa, de 383 km, no limite, pode ser considerada uma shortline”, diz.

O termo shortline remete ao transporte de cargas, mas há outras possibilidades de uso para linhas que não operam mais com a movimentação de produtos. A solução depende de estudos aprofundados de demanda, mas esses trechos podem ter vocação para o transporte regional ou urbano de passageiros (em linhas que atravessam cidades) ou para trens turísticos. Pode haver casos também em que a ferrovia não se viabiliza no presente, mas sua faixa de domínio pode ser importante para uma ferrovia de carga futura. O diretor da Sysfer Consultoria e Sistemas, Bento Lima, acredita, no entanto, que grande parte da malha sem tráfego no Brasil poderia ser reativada como shortline. Em segundo lugar, o uso mais frequente seria para turismo.

“Existe uma série de utilizações ferroviárias que são possíveis e podem interessar às prefeituras locais, podem interessar os governos estaduais, mas isso precisa ser trabalhado. Claro que tem que criar incentivos para que essas coisas possam se materializar. Isso não vai acontecer do nada”.

Lima foi um dos responsáveis por um estudo feito a pedido do Ministério da Infraestrutura e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Resumidamente, o documento, entregue em março de 2022, propôs uma nova metodologia para o processo de devolução de trechos e também trouxe uma análise para a definição de uso dessas linhas. No momento, a consultora está fazendo levantamento de identificação de trechos antieconômicos da Malha Sul, contratado pela Rumo.

Inspiração norte-americana

Difícil comparar a infraestrutura ferroviária dos EUA com a do Brasil. Mas no país norte-americano, as ferrovias viveram algo parecido na pré-assinatura do Staggers Rail Act, em 1980. Havia uma quantidade significativa de trechos e ramais abandonados ou considerados de baixa demanda na época. Não era permitido aos operadores ferroviários (que nos EUA atuam como autorizatários) reestruturarem seus sistemas, inclusive em relação às linhas inoperantes.

Com o Staggers Act, os processos de compra e venda e desativação de linhas férreas foram simplificados. O aumento da oferta de ativos propiciou a entrada de diversas empresas no mercado ferroviário, com ampla participação de pequenos e médios operadores. Atualmente existem mais de 600 shortlines operando no país.

“As companhias ferroviárias começaram a pressionar o órgão regulador dos EUA para a desregulamentação do sistema, porque eles queriam se livrar de muitas dessas linhas que estavam dando prejuízo”, explica João Felipe Lanza, pesquisador acadêmico com ênfase em transporte ferroviário e autor do livro ‘Ferrovias, mercado e políticas públicas: as shortlines como solução para o transporte ferroviário no Brasil’.

No mercado ferroviário norte-americano, essas linhas são categorizadas através de sua receita anual de operação. Podem pertencer ao grupo de classe 2 (com receitas entre US$ 35,8 milhões/ano e US$ 447,6 milhões/ano) e de classe 3 (com faturamento inferior a US$ 35,8 milhões anual). As de classe 1 têm receitas acima de US$ 447,6 milhões/ano. Lanza diz que as shortlines tem três propósitos nos EUA: integrar indústrias que utilizam o transporte ferroviário para fins particulares; alimentar o tráfego de cargas das ferrovias estruturantes (a grande maioria opera para isso); e realizar o transporte de passageiros, seja para fins turísticos ou comerciais.

Um dos motivos, segundo ele, para esse modelo prosperar nos EUA é a própria infraestrutura ferroviária, madura e com concorrência entre as malhas estruturantes. Naquele país, mais de uma companhia faz trajetos entre as costas Leste e Oeste, assim como de Norte a Sul. A shortline se utiliza dessa competitividade para barganhar em relação a direito de passagem e tarifas de transporte. Cerca de 30% da carga movimentada em ferrovias tronco nos EUA têm origem ou termina numa shortline, número considerado expressivo. No Brasil, os corredores estruturantes são basica mente monopólios geográficos de poucas companhias, uma barreira para a concorrência de preços.