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Opinião – Autorizações ferroviárias, imaginação institucional e o Brasil que anda nos trilhos

31.08.2021 | | ABIFER News

Por Rafael Vanzella é sócio de infraestrutura do Machado Meyer Advogados; Gabriel Rapoport Furtado é advogado da área de infraestrutura do escritório.

O setor ferroviário brasileiro encontra-se em notável processo de transformação. Conforme noticiado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o volume de cargas transportadas por ferrovias em março deste ano foi aproximadamente 30% superior ao volume de 2020, com crescimentos expressivos na movimentação de cargas como os granéis agrícolas, os minerais e os combustíveis.
Esse aumento parece reflexo de importantes medidas do Governo Federal para a ampliação da malha nacional, que vão desde a viabilização de novos projetos até a modernização da estrutura regulatória do setor. Entre elas, contam-se novos leilões, prorrogações antecipadas de concessões e a utilização de instrumentos pioneiros, como os chamados “investimentos cruzados”.
Ainda assim, a comparação internacional revela que o Brasil tem um longo caminho a trilhar para que as ferrovias adquiram a relevância que tem em outros países com dimensões continentais. Segundo dados do Plano Nacional de Logística – PNL, o modal ferroviário responde por cerca de 21,6% da matriz de transportes brasileira, proporção distante dos 37% na China, 43% nos EUA ou 81% na Rússia.
Paralelamente aos esforços em nível federal, alguns estados passaram a impulsionar estradas de ferro subnacionais, por meio de legislações estaduais. Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso e Pará estão na vanguarda desse movimento, tendo estabelecido regras para a outorga da exploração de ferrovias locais por particulares. Despontam entre essas regras as que tratam do modelo de autorização. Diferentemente do modelo de concessão, sob autorização os serviços ferroviários são prestados em regime de direito privado, não lhes sendo aplicável a licitação e a disciplina própria do serviço público.
A concepção do modelo de autorização no setor ferroviário veio de um projeto de lei do Senado, o PLS 261, que tramita no Congresso Nacional desde 2018. Sente-se distante a aprovação do PLS 261, o que levou aqueles estados a adotarem suas próprias iniciativas em matéria de autorização de estradas de ferro.
Há quem alegue que tais iniciativas violariam a repartição constitucional de competências, pela qual cabe à União a exploração do serviço de transporte ferroviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de estados. Ainda que compita aos Estados tudo aquilo que a Constituição não lhes tenha vedado, as ferrovias subnacionais seriam tidas como integrantes de uma malha única, de caráter nacional, por interligar diferentes estados, ou conectar centros de produção a infraestruturas de exportação.
O argumento não leva em conta o que se verifica em qualquer indústria de rede, como é o caso da logística. As rodovias estaduais também se conectam com estradas ou outras infraestruturas federais e levam usuários a outros estados e países. Nem por isso se questiona a possibilidade de os estados serem titulares de rodovias, e de conduzirem programas de participação privada em relação a elas. Não se pode, além disso, desprezar a história: malhas ferroviárias estaduais não constituem novidade no Brasil, inclusive após a Carta de 88. A antiga Ferrovia Paulista S/A – FEPASA, incorporada à Rede Ferroviária Federal S/A em 1998 a título de pagamento de dívidas do Estado de São Paulo junto à União, foi a titular, até a sua extinção, da Malha Paulista, posteriormente concedida pelo Governo Federal.
O pacto federativo forjado em 1988 não parece ser, assim, um empecilho às autorizações estaduais para ferrovias privadas. O desafio de tais projetos concerne, mais propriamente, à viabilidade econômico-financeira dos empreendimentos ferroviários autorizados. Isso porque, sob o modelo de autorização, independentemente do nível federativo, as ferrovias são desenvolvidas pelos particulares autorizados sem compartilhar riscos com a administração pública e sem direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, nem mesmo em hipóteses de caso fortuito ou de força maior.
Sem uma racional repartição de riscos em projetos dessa natureza – envolvendo horizontes de longo-prazo, capital intensivo e sujeitos a toda sorte de oscilações políticas e econômicas –, pode-se esperar até mesmo uma falta de atratividade dos capitais privados para as ferrovias autorizadas. Em palavras mais enérgicas, se já é difícil tirar do papel uma estrada de ferro sob o modelo da concessão, que o dirá sob o modelo da autorização. Nos leilões mais recentes, que ofertaram ferrovias sob o modelo da concessão, a concorrência foi baixíssima: apenas dois licitantes na Ferrovia Norte-Sul Tramo Central, e um único interessado na Ferrovia de Integração Oeste-Leste. Há uma grande expectativa acerca do nível de disputa para a Ferrogrão, enquanto o Governo Federal sinaliza que reconhecerá sucesso, se houver um único licitante.
Na prática, o modelo de autorização de ferrovias tenderá a ser aplicado em casos excepcionais, ou então em estradas de ferro com baixo potencial de estruturação logística e intermodal. Eventualmente nada além de ramais serão implantados nas ferrovias existentes, sob o modelo de autorização, para o que, no limite, o marco regulatório do vetusto Decreto 1.832 de 1996 já seria suficiente. A malha ferroviária não será robustecida sem um regime jurídico adequado para empreendimentos de riscos que o mercado não é capaz de mitigar. É dizer: o regime de direito público é fundamental para determinados tipos de empreendimentos, e o caso das estradas de ferro é um deles.
De toda forma, as iniciativas estaduais são positivas. Elas revelam experimentalismo democrático e são compatíveis com a ideia de federalismo cooperativo, que deve facilitar ações conjuntas e experiências institucionais compartilhadas entre os vários níveis da República – fazendo da federação um instrumento fértil para a inovação e a construção dos contramodelos para o futuro do país, de que trata o professor Mangabeira Unger.
Nesse exercício de imaginação institucional, espera-se que as legislações acerca das ferrovias subnacionais possibilitem a superação de desafios para o desenvolvimento da malha ferroviária brasileira, a ampliação da participação das ferrovias na matriz de transportes nacional e a potencialização daquilo que, num momento crítico como este, pode bem ser entendido como “o Brasil que anda nos trilhos”.

Este artigo é uma publicação do Estadão, em 27 de agosto de 2021. Para acessar a publicação original, clique aqui.