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Opinião – Como a Covid-19 obrigará o mundo a repensar – urgente – a mobilidade urbana

31.05.2021 | | Notícias do Mercado

Estadão - 28/05/2021

Autor do texto:

Rodrigo Tortoriello é consultor especialista em Mobilidade Urbana e Mobilidade Ativa, pós-graduado com MBA em engenharia de transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pós graduado no Master em Liderança e Gestão Pública – MLG do CLP – Liderança Pública. De 2013 a 2019, atuou como secretário de Transporte e Trânsito de Juiz de Fora (MG). Tortoriello ocupou o cargo Secretário Municipal extraordinário de Mobilidade Urbana em Porto Alegre (RS) de 2019 a 2020 e presidiu o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Públicos de Mobilidade Urbana de 2018 a 2021.

No texto, Rodrigo discorre sobre os reflexos da Covid-19 na mobilidade urbana. Ele aponta que é necessário começar a testar a tecnologia para estar preparado para o novo cenário pós pandemia. Leia:

 

A humanidade está diante de uma das mais graves crises sanitárias que já vivenciou e desde o início da pandemia já se vão 17 meses. O desafio de vencer a crise se apresenta como um importante agente de mudança comportamental, gerando reinvenções e adaptações a modos de vida prospectados apenas em futuros longínquos. Em dezembro de 2019 os dados foram lançados à mesa, a sorte de destinos e vidas iniciava uma guinada na história.

Talvez ainda não seja possível ter uma dimensão real de como a vida e os hábitos da sociedade serão impactados negativamente e positivamente nesse processo.

Por certo que o impacto negativo mais aparente está na cifra de mais de 400 mil mortos pela Covid-19, segundo os dados oficiais do Brasil. Mas os reflexos da pandemia não se limitam a crise sanitária, há uma amplitude de demandas: ainda não se consegue mensurar quais serão as perdas com relação ao processo de aprendizagem dos alunos que ficaram sem aula, como a economia será realmente afetada e transformada nos próximos anos e quais serão as mudanças no mundo que vivemos até dezembro de 2019, e a única certeza é da mudança.

Na mobilidade urbana muitos reflexos já são percebidos, e a utilização do transporte público diminuiu de forma significativa em todo o mundo. Os registros das autoridades de transporte apontam para uma diminuição do número de passageiros no transporte público, há casos em que se verificou uma queda de 80% com relação ao que se tinha antes da pandemia. Alguns sistemas paralisaram totalmente as suas operações e não havia possibilidade de se deslocar nos serviços de transporte coletivo. Essas necessárias restrições se deram devido ao isolamento social e à redução das atividades econômicas, medidas preventivas de disseminação do vírus. Com boa parte dos estabelecimentos comerciais fechados e a introdução do home-office em diversos setores da economia, muitos deslocamentos diários pelo motivo trabalho deixaram de ocorrer.

O fechamento do comércio não essencial e a redução dos deslocamentos potencializaram as mudanças de comportamento da sociedade, modificações que poderiam levar décadas para acontecer em situações de não pandemia. As transformações nos hábitos de consumo já vinham ocorrendo em diversos outros setores, na música, por exemplo, surgiram as plataformas de conteúdo de áudio que alteraram completamente a relação entre o consumidor, a indústria da música e os artistas. A facilidade de acesso à internet nos “smartphones” fez com que a velocidade da informação e o acesso às compras ficassem muito mais fáceis, o comércio on-line se tornou algo menos distante para uma boa parte da população que nunca havia experimentado esse tipo de consumo. Os APPs desenvolvidos como plataformas de compras simplificadas agregaram ainda mais facilidades e ocuparam seu espaço de importante canal de venda.

Segundo estudos da Webshoppers Ebit Nielsen & Bexs Banco, o comércio virtual cresceu 41% em 2020 comparado com 2019, representando a maior alta desde 2007. O faturamento do e-commerce cresceu R$ 87,4 bilhões e o número de pedidos atingiu a marca de 194 milhões, representando uma alta de 30% sobre 2019. Outro dado relevante nesta pesquisa é o crescimento das compras pelo celular, a relevância do equipamento nas compras on-line se evidencia quando mais de 55% do volume de vendas ocorreu nos smartphones. Esse resultado representa uma alta de 79% em relação a 2019 e 176% sobre 2018.

A realidade não seria diferente para o mercado de mobilidade, o qual também vem se transformando ao longo dos anos, em 2012 o aplicativo de navegação Waze chegava oficialmente ao Brasil, alterando a forma como as pessoas escolhem os caminhos para ir do ponto A até o ponto B nas grandes cidades. Como a promessa de escolher o melhor caminho e reduzir o tempo nos congestionamentos o aplicativo se tornou bastante utilizado no país. Nessa mesma época, a digitalização e velocidade da informação nos celulares também possibilitaram avanços nos serviços de transporte público. Foi nesse mesmo período que surgiram os primeiros serviços de informação em tempo real para os ônibus urbanos. Saber quanto tempo falta para o seu ônibus chegar no local de embarque em tempo real era um desafio que parecia intransponível, porém alguns aplicativos já davam essa informação com bastante precisão. Foi um período em que se pode quebrar alguns paradigmas e novos serviços, mais modernos e mais conectados com os clientes, chegassem ao mercado da mobilidade.

A dificuldade de usar o serviço de taxis em Paris fez com que os fundadores do aplicativo UBER criassem um serviço que juntava diversas das ferramentas citadas. Eles introduziram a facilidade de pagamento, a transparência no itinerário e no preço a ser cobrado do passageiro, propunham uma melhoria na qualidade sobre os serviços prestados pelos táxis e tudo isso cabia na palma da sua mão, em um “smartphone”. Não é necessário nos alongarmos aqui sobre o sucesso desse serviço com relação ao transporte individual.

Essa inovação foi um marco importante para a mobilidade urbana, a ideia do transporte sob demanda digital, em tempo real e de fácil acesso se tornava realidade. O sistema ainda não conseguiu se ajustar às questões de regulação e pagamentos de impostos em diversos países e a resistência da empresa em não seguir normas, pode colocar em risco a continuidade da prestação dos serviços pelo mundo. Mas o que ficou de aprendizado nesse processo de inovação e digitalização dos serviços de transporte individual, foi a necessidade de dar mais confiabilidade, qualidade e transparência ao cliente. Desejo que os clientes também possuam quando o assunto é o transporte coletivo.

Os longos tempos de viagem do transporte público, a falta de informação e confiabilidade com relação à prestação de serviços, as dificuldades com outros meios de pagamento nos serviços tradicionais de transporte estão fazendo com que passageiros se organizem para compartilhar uma viagem de transporte por aplicativo. Outra vantagem que os clientes estão identificando é o preço atrativo das tarifas desse serviço, fazendo com que o custo da viagem compartilhada seja menor do que a soma das tarifas pagas individualmente por cada passageiro. Entretanto, essa solução baseada no automóvel está longe de ser sustentável. Não existe solução de mobilidade para os centros urbanos que dependa exclusivamente dos veículos para transporte individual, além de não haver espaço físico suficiente estaríamos aumentando significativamente os índices de poluição e suas consequências para o meio ambiente.

Um esforço jamais visto na ciência foi capaz de produzir vacinas que poderão em breve resolver a questão da necessidade de isolamento social. É sabido que essa não é a primeira, nem a mais grave crise pela qual as cidades já passaram, e muito brevemente a agitação urbana, as atividades sociais e os deslocamentos urbanos retornarão com muito vigor. Mas se os hábitos estão mudando, nossas relações de consumo estão mudando, como as cidades e sistemas de transporte estão se preparando para esse “novo normal”?

Sendo mais específico, o conceito de “smartworking” deve se difundir com mais intensidade. Os grandes escritórios tendem a abandonar uma determinada quantidade de espaços de trabalho, até bem pouco tempo considerados essenciais, e as pessoas poderão conciliar o trabalho de casa com o presencial. Isso será importante em um processo que mescla redução de custos para as empresas com aumento da qualidade de vida dos colaboradores. Essa flexibilidade diminuirá a necessidade de deslocamentos diários e por consequência a demanda por viagens.

Um outro conceito que vem sendo defendido é o da “cidade em 15 minutos”, e a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, fez dele um dos pilares da sua plataforma de reeleição. O Objetivo é que as atividades de trabalho, estudo, saúde, lazer, compras e tudo mais que o cidadão faz no dia a dia, estejam a 15 minutos da sua casa e, idealmente, essas viagens deveriam ser feitas a pé ou de bicicleta. Em síntese, o conceito defende a ampliação das multi centralidades nas cidades a ponto de reduzirmos ao máximo os nossos deslocamentos de transportes motorizados.

Ao se juntar a tecnologia disponível na internet e nos smartphones com a tendência do “smartworking” e da “cidade em 15 minutos”, estará sendo criado um novo formato de cidade e distribuição das atividades, para a qual nosso sistema de transportes ainda não está preparado. Nesse sentido, um modelo que pode ganhar muita força nos próximos anos é o transporte coletivo sob demanda o “ridepooling”. Viagens com perfis semelhantes serão agrupadas e compartilhadas em serviços digitais que oferecem muito do que o cidadão busca hoje em dia.

Com as mudanças de comportamento e evolução das relações de trabalho e consumo que estão ocorrendo, pode-se imaginar que veículos menores que nossos ônibus convencionais, possam realizar os serviços de transporte de forma ágil e personalizada. Outra inovação que não demora chegar definitivamente às ruas são os veículos autônomos. O que até outro dia parecia uma realidade distante, ou até mesmo ficção científica, já se encontra em funcionamento em alguns projetos piloto de transporte coletivo na Europa e, em maior quantidade, para o transporte individual nos EUA e na China.

Veículos menores, que não ocupam tanto espaço urbano e não sejam tão poluentes por passageiro como os automóveis no transporte individual, que tenham a flexibilidade de itinerário, sem paradas fixas, e até mesmo totalmente automatizados, podem ser a solução intermediária para o transporte local que terá como função alimentar as redes de maior capacidade, como as linhas troncais de ônibus, VLTs, BRTs, metrôs e trens.

Esse serviço já se encontra em testes em diversos locais do mundo e se apresenta como uma evolução do transporte individual por aplicativo. Ele traz toda a modernidade, qualidade, transparência e confiabilidade que o cliente encontrou na digitalização dos serviços similares aos táxis, porém com um algoritmo baseado no coletivo e na racionalidade do deslocamento, ao invés de encontrar o motorista mais próximo para o cliente que fez um chamado no app. A próxima geração desse serviço será a dos carros autônomos, que reduzirão os custos de operação e perdas com acidentes, e, se movidos a eletricidade, reduzirão ainda mais a emissão de poluentes e melhorando a qualidade do ar nos centros urbanos.

Existem poucas iniciativas relativas a transporte coletivo sob demanda em testes hoje no Brasil. Goiânia, Fortaleza e Belo Horizonte são alguns exemplos, contudo, ainda muito tímidos, o mercado parece que ainda não encontrou a melhor forma de adaptar esse serviço à realidade brasileira. Começar a testar a tecnologia, principalmente nas linhas de baixa demanda e que não são rentáveis para o sistema, podem ser uma oportunidade para que se melhore a performance da linha, enquanto se aprende e se acostuma a utilizar essa ferramenta de planejamento, operação e comunicação com o cliente que em breve poderá ser um lugar comum nos serviços de mobilidade. Estar preparado para o novo cenário que teremos pós pandemia é cada vez mais essencial, o mundo está mudando rápido e as pessoas não estão dispostas a esperar muito pelas respostas às suas necessidades.