Av. Paulista, 1313 - 9º Andar - Conjunto 912 (11) 3289-1667 [email protected]
pt-bren

ABIFER na mídia – Propostas para ferrovia

01.12.2022 | | Notícias do Mercado

Fonte: Revista Ferroviária
Data: Edição imprensa – setembro/outubro

Das eleições mais disputadas da História à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para um terceiro mandato como presidente do Brasil, o país caminha para uma transição de governo cujas direções ainda são incertas no âmbito da infraestrutura ferroviária. No programa de governo de Lula, divulgado durante a campanha, as palavras “ferrovia” e “mobilidade” não aparecem no texto, ao passo que “transporte” está escrita em duas ocasiões. O documento diz em um dos trechos que “é preciso garantir a modernização e a ampliação da infraestrutura de logística de transporte, social e urbana, com um vigoroso programa de investimentos públicos”.

Outra passagem está pautada no processo de reorganização das cidades: “Retornaremos as políticas de garantia do direito à cidade, combatendo desigualdades territoriais, em direção a uma ampla reforma urbana, reduzindo as desigualdades socioterritoriais e promovendo a transição ecológica das cidades por meio de investimentos integrados em infraestrutura de transporte público, habitação, saneamento básico e equipamentos sociais. Apoiaremos e incentivaremos as cidades criativas e sustentáveis”.

Em que pese a tarefa hercúlea de driblar o teto de gastos a fim de garantir recursos para
infraestrutura, o novo governo vem embalado por duas promessas: ampliação dos investimentos públicos e foco na sustentabilidade, especialmente no tema mudanças climáticas.
Ainda é muito cedo para afirmar que a ferrovia ganhará o peso que merece no contexto
em que a descarbonização tem sido apresentada como prioridade. Mas a preocupação
ambiental explicitada pelo novo governo não deixa de ser um ponto a favor para o setor
ferroviário de carga e de passageiros. É nesse cenário que ambos os segmentos apresentam suas propostas para os próximos quatro anos.

Durante a campanha eleitoral, a ANPTrilhos entregou aos candidatos à presidência o documento Eleições 2022 – Propostas para o Avanço da Mobilidade Urbana Nacional. Nele há quatro temas que a associação lista como fundamentais para o crescimento da rede metroferroviária no Brasil: atualização do marco legal do transporte público urbano, instituição de uma nova política de remuneração da operação ferroviária, criação de Autoridades Metropolitanas de Transporte e elaboração de um Plano Nacional de Desenvolvimento do Transporte Ferroviário de Passageiros.

Curiosamente, apenas os representantes da campanha de Lula deram retorno à ANPTrilhos após receberem o material: “Eles foram os únicos que nos procuraram para discutir as propostas e se comprometeram, na eventualidade de o Lula ser eleito, de voltarmos a conversar. Estamos aguardando a definição do grupo de transição para sabermos quem ficará a cargo dessa área”, afirma o presidente do Conselho da ANPTrilhos, Joubert Flores.

Na lista de apoios que a entidade pretende angariar junto ao próximo governo está a aprovação do Projeto de Lei 3.278/2021, de iniciativa do senador Antonio Anastasia, e que hoje está em avaliação na Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado. Ele propõe atualizar o marco legal da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), assinada em 2012, durante o governo de Dilma Rousseff.

O PL 3.278 apresenta, resumidamente, diretrizes para melhorar o serviço de transporte público nas cidades, além de propostas que possam promover mudanças em questões como financiamento, remuneração, regulação e contratos com empresas privadas. Foi apresentado em setembro de 2021 e contou com sugestões da ANPTrilhos e da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). O cerne da proposta, já previsto na PNMU, mas nunca implementado, é a

distinção entre a tarifa de remuneração (paga aos operadores e suficiente para cobrir os custos de operação) e a tarifa pública (paga pelo passageiro para a utilização do serviço), com a diferença sendo coberta por recursos orçamentários ou outras fontes extratarifárias. Esse modelo de remuneração hoje é praticado não só em países como Inglaterra e França, mas também pela prefeitura de São Paulo, no sistema de ônibus municipais.

“O atual modelo de remuneração da operação, baseado hoje na tarifa paga pelo passageiro, está falindo o sistema de transporte urbano. E quando se fala em subsídio é preciso também evoluir do critério de ‘número de passageiros transportados’ para um sistema por ‘serviços prestados’ ou por ‘disponibilidade’, com a criação de um indicador de performance operacional. Com isso, podemos aumentar a segurança jurídica, proporcionar maior atratividade aos investimentos e, ainda, estimular os operadores a investir em melhorias e em medidas para reduzir gastos”, explica o presidente do Conselho da ANPTrilhos, Joubert Flores.

 

Transporte regional

 

Outro projeto que avançou nos últimos anos foi a formulação da Política Nacional do Transporte Ferroviário de Passageiros (PNTFP), uma ação capitaneada pelo Ministério da Infraestrutura e que também contou com apoio de entidades, a exemplo da ANPTrilhos. Trata-se de uma iniciativa que tem como objetivo fomentar a volta do transporte regional de passageiros sobre trilhos no país. Por ser uma política abrangente, que aborda transporte de passageiros entre regiões, o processo foi conduzido pela secretaria nacional de Transportes Terrestres (SNTT) do MInfra e pelo seu Departamento de Planejamento e Projetos Especiais (DPLAN).

Em outubro, o MInfra colocou em consulta pública a minuta do decreto que visa instituir a PNTFP. A sugestão pela edição de um decreto foi decidida, segundo a pasta, para agilizar o processo de regulamentação dessa política, que está diretamente associada à Lei 14.273/2021. O Marco Legal das Ferrovias traz um capítulo específico sobre o transporte ferroviário de passageiros. A consulta se encerrou no último dia 3 de novembro e agora o setor aguarda a divulgação do documento final pelo MInfra.

Para Flores, a PNTFP será a base para que o país finalmente volte a ter ligações ferroviárias regionais e inter-regionais – um nicho de alta demanda e baixa oferta. “Um marco regulatório específico para o transporte regional de passageiros, em especial no que tange à operação, segurança, interface com os clientes e serviços ofertados, gera segurança jurídica e estabilidade regulatória, que contribuem para a atração do mercado e o interesse pelo investimento privado”.

Outro pleito antigo, a instituição de Autoridades Metropolitanas de Transporte continua na pauta prioritária do setor ferroviário. Na prática, seria uma agência formalmente criada com representantes da União, dos estados e dos municípios das regiões metropolitana. Teria o poder de coordenar a mobilidade nessas regiões, com um orçamento dividido por todos os entes governamentais participantes. Suas funções seriam desde a priorização de investimentos, preparação de estratégias integradas de transporte urbano e uso do solo até a definição de políticas operacionais, tarifárias e de subsídios. “É uma alternativa para levar mais eficiência ao planejamento e à gestão governamental da mobilidade”, completa Flores.

Uma entidade com essas atribuições ainda não existe no Brasil, mas também não foi tirada da cartola. A inspiração, segundo Flores, vem de países onde o transporte urbano é exemplo de eficiência, como Inglaterra, França e EUA. Em Londres, capital da Inglaterra, por exemplo, o sistema de metrô é operado por uma empresa pública, mas os corredores de ônibus, não. Ambos, no entanto, estão submetidos a uma Autoridade Metropolitana, que decide como será a oferta de transporte, a integração entre modais, os indicadores que as empresas terão que cumprir, os investimentos prioritários, entre outros pontos. Os subsídios às operações de transporte são obtidos por meio de orçamento federal, estadual e municipal. Os recursos vêm, em parte, da cobrança de pedágio de carros que atravessam o centro da cidade.

“Em Paris, os recursos vêm das partes federal, municipais, da capital e parte do imposto que eles cobram das empresas que têm mais de 10 funcionários. Esse dinheiro todo entra como subsídio ao transporte público, através da Autoridade Metropolitana”, exemplifica. Flores sugere que o governo federal crie algum tipo de benefício para incentivar a criação dessas autoridades metropolitanas pelo país. “É preciso estimular. Criar linhas de financiamento a projetos de mobilidade para as cidades que se organizarem, que implementarem uma autoridade. É assim nos EUA. No ano passado, o governo federal norte-americano destinou US$ 13 bilhões para a mobilidade nas grandes cidades, mas só tiveram direito ao fundo aquelas que estão organizadas no sentido de planejamento e visão de longo prazo”.

A falta de autoridades metropolitanas no Brasil está diretamente relacionada ao fato de a Política Nacional de Mobilidade Urbana, da época do governo Dilma, não ter rendido tantos frutos, na opinião do presidente da ANPTrilhos. Entre outros pontos, o documento passou a exigir que os municípios com população acima de 20 mil habitantes elaborassem e apresentassem um plano de mobilidade urbana em troca da solicitação de financiamento federal para a implementação dos projetos. Em 2020, o presidente Bolsonaro prorrogou os prazos para a entrega dos planos pelas prefeituras, que acaba em abril de 2023. Um levantamento feito pelo governo federal atestou que somente 5% dos munícipios no Brasil tinham entregue seus planos de mobilidade.

“Eu acho que esse tema precisa ser retomado sob uma lógica de fazer um planejamento coerente, em cima das demandas que existem, para estabelecer qual melhor modal para determinada região. Ninguém quer implementar um modal que é caro, que não vai poder inaugurar dentro do mandato. Dessa forma, nunca teremos trilhos na mobilidade. A lógica é fazer qualquer coisa, para pegar um pouco de dinheiro. Existe um descompasso hoje do que é técnico e do que é político. E por isso a Autoridade Metropolitana é fundamental, porque a ideia é que haja um planejamento isento, que ultrapasse os quatro anos de mandato de um político”, explica Flores.

Sobram projetos, faltam soluções

A ANPTrilhos calcula que no Brasil existam mais de 3 mil km em projetos de sistemas de transporte de passageiros sobre trilhos que aguardam solução. Eles estão distribuídos em mais de 70 trechos de metrôs, trens urbanos, veículos leves sobre trilhos (VLT), trens regionais e inter-regionais. Nem todos estão avançados, muitos se apresentam na fase conceitual. Cerca de 800 km estão em São Paulo, incluindo os eixos do Trem Intercidades (Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e Santos). No Rio de Janeiro, estão contabilizados cerca de 300 km. A Linha 3 do Metrô é um exemplo, embora seja um projeto incipiente, entrou no plano de governo de Cláudio Castro, reeleito no estado fluminense.

A demanda é muito diferente da realidade. O setor conta hoje com 12 obras em andamento, que deverão acrescentar 124 km à malha ferroviária de passageiros nos próximos anos. A maior parte está concentrada em São Paulo, na expansão do sistema de metrô. Para 2022, está previsto o incremento de apenas 7,2 km e cinco novas estações à rede metroferroviária brasileira, com entregas no ramal Aeroporto do VLT Parangaba-Mucuripe, em Fortaleza (CE); da Linha 9-Esmeralda, do sistema de trens metropolitanos de Sa?o Paulo; e da Linha Branca, da CBTU Natal (RN).

“O Brasil é um país extremamente carente de infraestrutura, justamente porque os investimentos nessa área estão sempre diminuindo e tudo acaba dependendo de uma concessão. Eu não acho que está errado, é importante ter o investimento privado, mas o ideal é que o poder público possa participar com pelo menos uma parte”, afirma Flores, acrescentando que a expectativa do setor é que o governo eleito possa destinar recursos públicos para projetos de mobilidade.

“O discurso do governo eleito vai mais na linha desenvolvimentista, no sentido de que o Estado deve participar mais dos investimentos. Mas nos mandatos anteriores de Lula nunca houve uma restrição ao capital privado. Acredito que, em face da necessidade de infraestrutura, os investimentos públicos não serão suficientes. É melhor ter uma complementação através do privado e de um sistema de garantia que consiga atrair esses entes privados”, pontua. Flores diz ainda que a sustentabilidade é um bom argumento para projetos de mobilidade sobre trilhos. No entanto, essa questão só vai para frente se houver em paralelo uma política pública para desestimular o uso de carro/transporte individual. “Se o governo fala em sustentabilidade, tem que criar políticas para descarbonização, tem que retirar carros das ruas, tem que estimular as pessoas a usarem transporte público, principalmente quando ele é sustentável”, conclui.

Semob perdeu status

 

Para o setor ferroviário de passageiros, o início do governo de Jair Bolsonaro contrasta-se com o que se tornou a gestão na área de mobilidade urbana nos últimos quatro anos. Em janeiro de 2019, o otimismo reinou com a nomeação de Jean Carlos Pejo, então secretário geral da Associação Latino-Americana de Ferrovias (Alaf) e com bastante articulação dentro do setor ferroviário, para Secretário Nacional de Mobilidade e Serviços Urbanos (Semob), organismo vinculado ao Ministério de Desenvolvimento Regional. Durante seu mandato, Pejo conseguiu algumas vitórias, como a criação da linha de financiamento Retrem, para a compra de trens de metrô e metropolitanos por meio de recursos do FGTS e do FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador). A iniciativa, no entanto, não gerou contratos – até o momento nenhuma operadora usufruiu do crédito.

O mandato de Pejo durou apenas sete meses. O que se viu depois disso foi uma dança das cadeiras na secretaria, culminando, em 2020, na fusão da Semob com a Secretaria de Desenvolvimento Regional e Urbano. A mudança foi vista pelo setor como um processo de “downgrade”, uma perda de status e de interesse do governo com o segmento de mobilidade urbana. Para completar, na proposta orçamentária do governo Bolsonaro para o próximo ano, encaminhada ao Congresso Nacional, várias áreas de infraestrutura sofreram cortes significativos. Especificamente na mobilidade urbana, os recursos saíram de R$ 112,7 bilhões em 2022 para R$ 7,5 bilhões em 2023.

 

Avanços e complexidades em carga

No segmento de carga, os avanços nos últimos quatro anos foram notáveis, oriundos de um processo que teve início em 2015, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff apresentou o plano de renovações antecipadas dos contratos de concessões das ferrovias. De 2020 para cá, quatro concessionárias tiveram suas prorrogações assinadas: a Malha Paulista, da Rumo, primeira a renovar sua concessão; a Estrada de Ferro Vitória a Minas e a Estrada de Ferro Carajás, ambas operadas pela Vale; e a MRS Logística. Mais de R$ 20 bilhões de investimentos foram acordados pelo governo federal com a Rumo, Vale e MRS como contrapartida para os 30 anos adicionais de contrato.

Alguns projetos, no entanto, ficarão na conta do próximo governo. Nessa lista estão as renovações antecipadas da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) e da Rumo Malha Sul. A primeira foi incluída no pacote de concessões do governo Dilma, mas acabou sendo a última na fila de análises da ANTT; a segunda foi qualificada pelo PPI em dezembro de 2020 e estão com os estudos incipientes na agência. Há também a Ferrovia Tereza Cristina, que manifestou o interesse em renovar a sua concessão, mas o projeto ainda não foi qualificado no PPI.

O caso da FCA, operada pela VLI, embora esteja mais avançado, é considerado complexo. Com uma malha de 7.220 km, que ultrapassa a fronteira de sete estados (Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Sergipe, além do Distrito Federal), a ferrovia está no

t centro de uma disputa que envolve os mais variados interesses de âmbitos locais. Somado a isso, há também uma dificuldade natural de se estruturar projetos de demanda, operacionais e financeiros para uma malha com vocação para carga geral.

O plano de negócio da FCA foi colocado em consulta pública no início de 2021, mas deverá passar por uma nova rodada de audiências – decisão tomada pela ANTT por conta das mudanças significativas que o projeto vem sofrendo ao longo dos últimos meses. Em paralelo, algumas críticas em relação à vantajosidade da renovação correm no setor. O plano não está fechado, mas há discordâncias quanto aos investimentos previstos até agora (R$ 13,8 bilhões), dos quais a maior parte seria destinada à manutenção da ferrovia e o restante praticamente na compra de vagões e locomotivas.

Os incômodos também se referem à ausência – até o momento – de recursos para obras de conflitos urbanos e de uma destinação mais bem estruturada dos trechos a serem devolvidos – estima-se que serão em torno de 1.700 km com a renovação. A polêmica da devolução dos trechos se estende aos cálculos das indenizações que a concessionária terá que pagar ao governo federal. O que está em discussão é se os recursos deverão ser calculados antes da assinatura do termo aditivo e se a concessionária precisará apresentar estudos com alternativas para utilização dos trechos (antes de firmar a renovação).

Em meio a essas questões, todas as cartas, a princípio, estão na mesa, inclusive a própria relicitação da FCA, ao fim do contrato de concessão, que se encerra em 2026. O diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes, acredita, no entanto, que o programa de renovações ferroviárias não deverá ser interrompido. “Pelas conversas que tivemos até agora, não há intenção alguma. Primeiro porque é um programa que está dando certo, mostrou-se adequado para viabilizar investimentos no setor em um momento em que houve muito retrocesso de recursos públicos por conta da crise fiscal. Nada indica, também, que vamos voltar a ter investimentos públicos significativos no curto prazo no setor ferroviário”.

O imbróglio da Transnordestina

Outro caso complexo que vai cair no colo do novo governo é a Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), concessionária da Malha Nordeste. A operadora acumula processos administrativos na ANTT por descumprimento de regras de contrato, o que podem resultar na caducidade da concessão. A FTL foi a única ferrovia até agora a não manifestar interesse formal em renovar seu contrato.

Há também o imbróglio da Transnordestina Logística (TLSA), ferrovia que remonta do final do primeiro mandato de Lula, em 2006, e agora volta para o governo do presidente eleito. O projeto é de 1.752 km, ligando a cidade de Eliseu Martins (PI) até Salgueiro (PE), onde os trilhos se dividem em dois trechos: um ramal para o Porto de Suape (PE) e o outro para o Porto de Pecém (CE). As obras deveriam ser concluídas em 2010. Os trabalhos, no entanto, se arrastaram até 2017, quando foram paralisados por problemas de licenças ambientais, desapropriações e fluxos de capital.

Em 2019, as obras da Transnordestina voltaram com recursos próprios da CSN, acionista principal da ferrovia, depois de um acordo feito com o Ministério da Infraestrutura. Outra mudança aconteceu em julho deste ano: após proibir em 2016 o repasse de recursos públicos para as obras, em função de irregularidades, o TCU voltou a permitir investimentos de fundos públicos e do BNDES na construção da ferrovia. O uso de dinheiro do orçamento federal continua proibido. O custo para conclusão de todo o projeto foi estimado em R$ 6,7 bilhões em 2020. Até o momento foram aplicados cerca de R$ 6,2 bilhões, a maior parte de recursos públicos.

No ano passado, o então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, afirmou que as obras da Transnordestina só seriam concluídas no trecho do Ceará, até o Porto de Pecém. A outra ponta, em direção ao Porto de Suape, teria sido identificada como não viável financeiramente, segundo Freitas. Alguns meses depois, a Bemisa, uma companhia de mineração do grupo Opprtunity, apresentou um pedido de autorização para a construção de uma ferrovia entre Curral Novo (PI) a Ipojuca (Porto de Suape), em Pernambuco, com 717 km. O trecho passaria por obras inconclusas da TLSA.

“Na minha opinião, é preciso ver se a Transnordestina é uma ferrovia que vai funcionar como indutora de desenvolvimento. Não há uma grande demanda hoje em dia que justifique, do ponto de vista meramente econômico. Acho que do ponto de vista do interesse público, a ferrovia não é só bem-vinda, mas também necessária. É preciso ver se vai ter espaço e demanda para duas ferrovias”, opina Paes.

Autorizações ferroviárias

O modelo de autorizações ferroviárias, aprovado em 2021 por meio da Lei 14.273, talvez tenha sido um dos mais disruptivos para o setor ferroviário nos últimos quatro anos. O instrumento, que permite as empresas privadas construírem suas próprias ferrovias sem recursos públicos, foi um sucesso, aos olhos do governo, ao julgar somente pelo número de propostas. São ao todo 95 pedidos de autorização, sendo 27 aprovados pelo Ministério da Infraestrutura.

A realidade que se impõe, no entanto, é outra. Nenhum projeto saiu do papel até o momento. Há críticas no mercado em relação aos critérios utilizados pela ANTT para a aprovação de pedidos – considerados por especialistas “frouxos” demais, dando margem para um caráter especulativo das solicitações. Essa é a opinião do economista, ex-diretor geral da ANTT no governo PT e hoje consultor da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Bernardo Figueiredo. Para ele, o novo governo deveria pensar em novos meios para que os projetos se tornem realidade.

“O governo atual delegou à iniciativa privada a resolução da falta de ferrovias no país. Em nenhum lugar do mundo, projetos estruturantes de ferrovias aconteceram sem recursos públicos. É assim desde o século XVIII. Não acho que o Brasil será o primeiro a implementar esse modelo com sucesso”, diz Figueiredo, que levou para ANTT propostas para o estabelecimento de marcos de implementação pelas autorizatárias. “Acho que deveria haver critérios de execução que envolvessem um depósito de garantia de 5% do valor do projeto, por exemplo. Também um prazo para a capitalização da Sociedade de Propósito Específico (SPE). São questões importantes para sabermos se um projeto tem capacidade de ir para frente ou não”.

Na opinião do consultor, é preciso pensar ainda em modelos de concessão subsidiadas para estimular a implementação de novas ferrovias no país. “Acho pouco provável que o modelo de obra pública e posterior concessão

Obras na conta do governo eleito

Além da Transnordestina, outras obras públicas vão passar (ou melhor, voltar) para o próximo governo. Foi no segundo mandato de Lula, em 2008, que tiveram início os estudos para a construção da Fiol. As obras efetivamente começaram em 2011, já no governo Dilma. O trecho 1, entre Ilhéus e Caetité (BA), foi concessionado à Bamin, que deverá terminá-lo. O trecho 2, entre Caetité e Barreira (BA), de 485 km, está em obras pela Valec, com 56,3% de avanço físico. Já o trecho 3, entre Barreiras e Figueirópolis (TO), ainda é um projeto.

O Ministério da Infraestrutura cogitou inclui-lo no plano de negócio da FCA, dentro do modelo de investimento cruzado. Mas essa decisão ficará para o governo eleito, que irá encontrar também a Valec e a Empresa de Planejamento e Logística (EPL) fundidas na companhia estatal Infra SA. Outro projeto incluído na conta do novo governo é a relicitação da Malha Oeste, após o pedido de devolução da concessão feito pela Rumo em 2020.

Concessão X Autorização

Um ponto que ainda não está definido é a relação entre as ferrovias autorizadas e as concessões já existentes. Essa questão, segundo Paes, será colocada em pauta pela ANTF em encontros com integrantes do próximo governo. A associação defende a regulamentação das regras que permitem a migração dos contratos de concessão para autorização. A migração é permitida pelo Marco Legal das Ferrovias (Lei 14.273) em dois cenários: quando houver uma concorrência assimétrica de demanda entre concessionárias e autorizatárias, e no caso de a concessionária construir ferrovias autorizadas que correspondam a no mínimo 50% da malha concedida ou à expansão do volume transportado em 50%.

concedida ou à expansão do volume transportado em 50%. “A lei fala dessa possibilidade de adaptação de uma forma muito genérica. Mas como vai ser essa equação, o que as concessionárias vão ter que pagar, enfim, como vai ser a relação da União com as concessões, porque está prevista a adaptação, mas não necessariamente a alienação dos ativos. Acho que tudo isso vai precisar ser muito bem regulamentado, talvez num decreto específico. É um assunto muito complexo e que vamos tratar no ano que vem”, diz Paes.

Outro ponto prioritário para o próximo ano, afirma o diretor-executivo da ANTF, é a autorregulação. Esse é um dos temas contidos na Lei 14.273/2021, que prevê tanto para as concessionárias quanto para as autorizatárias a possibilidade de associação, de forma voluntária, a uma entidade autorregulatória. Entre as funções desta entidade, de acordo com a lei, está a instituição de normas de padrões exclusivamente técnico-operacionais para o transporte ferroviário, no que se refere à via permanente e ao material rodante, por exemplo. O setor ferroviário aguarda agora uma regulamentação que detalhe os pontos expostos na lei.

A associação contratou recentemente uma consultoria para fazer estudos com o objetivo de identificar temas técnico-operacionais que podem ser pertinentes à autorregulação ferroviária. Paes afirma que há um interesse da ANTF em ingressar em uma eventual associação autorregulatória e contribuir com regras de caráter estritamente técnico-operacional, como o uso e fixação de dormentes. “São questões ligadas, por exemplo, ao compartilhamento de via, e a padronizações de engenharia. Enquanto o governo estrutura o decreto e diz como essa autorregulação vai funcionar, estamos estudando quais são os sistemas que podem ser objetos dessa autorregulação”, informa.

Preços dos insumos

Um tema que não ficou de fora do caderno de demandas da ANTF para os próximos anos foi a alta da inflação, que acabou impactando os preços dos insumos utilizados na ferrovia. Diesel, aço, cimento e material rodante entraram nessa lista, afirma Paes, explicando que, embora o risco inflacionário seja tradicionalmente das operadoras, os valores explodiram muito além do IPCA (índice de indexação dos contratos renovados), por conta da pandemia e da Guerra na Ucrânia.

A ANTF apresentou propostas para um eventual reequilíbrio de contrato das concessões em função da alta dos preços, que vão desde a prorrogação de prazos de obras (no âmbito da renovação dos contratos), redução de valores de outorga, extensão dos prazos de concessão até a modificação ou mesmo exclusão de investimentos já acordados. Em quase 30 anos de concessão, nunca houve discussões sobre reequilíbrio econômico-financeiro de contratos no setor ferroviário, o que torna o assunto bastante complexo.

O diretor geral da ANTT, Rafael Vitale, no entanto, já afirmou que é preciso ter cautela nas análises. “A ANTF nos entregou uma segunda versão de estudo recentemente. Se tudo estivesse muito claro, não precisaríamos de uma segunda versão. As questões devem levar em conta a matriz de risco existente em cada contrato de concessão. Vamos precisar analisar os fretes praticados. As operadoras vão querer abrir todas as suas informações?”, argumenta, afirmando que “não existe reequilíbrio preventivo” e que as discussões precisam se feitas de maneira bastante equilibrada entre concessionários e usuários.

A despeito desse tema, o diretor executivo da ANTF diz que a prioridade número um da entidade para o próximo ano é a manutenção da política de isenção do PIS/Confins sobre os combustíveis. A medida, segundo o diretor, “ajudou a estancar a sangria no setor ferroviário”. Essa pauta foi levada pela associação para as equipes dos presidenciáveis durante a campanha e agora deverá ser conversada com a equipe de transição de governo.

“A discussão sobre o diesel é muito pesada para o setor ferroviário. Em média, 30% do custo operacional das concessionárias recai sobre o combustível, o que vem tornando a situação insustentável em alguns fluxos. Se o problema não for equalizado, a gente pode ter interrupções, o que é a pior solução possível”, ressalta Paes, afirmando que o setor também dará atenção à renovação do Reporto, um benefício fiscal que garante isenção de IPI e PIS/Cofins para a compra de máquinas e equipamentos e está em vigor até o final de 2023.

“Vamos batalhar para que passe a ser renovado a cada cinco anos. O Reporto foi criado em 2004, curiosamente, no governo Lula. Acho que o novo governo vai ter essa preocupação também, principalmente por conta da indústria ferroviária. É um importante instrumento e que gera um impacto orçamentário muito baixo. Estamos falando de R$ 200 milhões, R$ 300 milhões por ano. É realmente periférico o valor da renúncia fiscal diante dos benefícios e do retorno”, conclui.

Política de estímulo à indústria

A promoção de uma eficaz política industrial no país, em que a indústria ferroviária seja contemplada é o resumo da pauta que a Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) pretende levar para o próximo governo. Com fábricas sem encomendas, a indústria ferroviária vive hoje um período de ociosidade que já perdura alguns anos, mesmo após os primeiros contratos de renovação das concessões serem equacionados – algo que até então eram a esperança dos fornecedores.

Alguns fatores explicam o momento atual, entre elas, a crise mundial que elevou os preços do aço e do petróleo, impactando diretamente o setor ferroviário e levando as concessionárias a colocarem um freio nos investimentos em material rodante. Mas não foi só isso: como as regras para a aquisição de vagões e locomotivas são mais flexíveis do que o cronograma de obras nos novos contratos, as encomendas acabaram não sendo priorizadas pelas operadoras.

“Estamos num momento exatamente oposto ao que vivemos nos primeiros anos de concessões ferroviárias, quando a demanda por vagões encheu as fábricas”, diz o presidente da Abifer, Vicente Abate. O período a que ele se refere é de 2003 a 2006, quando ANTF e Abifer acordaram um plano trienal de encomendas de vagões. Em 2005, a indústria alcançou o recorde de 7.597 unidades produzidas. No primeiro mandato de Lula (2003 a 2006), o setor também contou com algumas políticas que favoreceram os fornecedores nacionais, a exemplo da portaria de nº 243, de 11 de junho de 2003, que proibiu a importação de vagões usados – regra que vigora até hoje.

Entre as pautas prioritárias da Abifer para o próximo ano está a regulamentação pela ANTT do programa Frota Verde Ferroviária, criado pelo Ministério da Infraestrutura em setembro. A ideia do programa é incentivar a compra, por parte das concessionárias e das autorizatárias, de locomotivas mais sustentáveis, capazes de reduzir a emissão de gases de efeito estufa e o consumo de diesel. Abate diz que a indústria está preparada para essa demanda. “Temos um portfólio de locomotivas híbridas e máquinas movidas a bateria, que atendem aos critérios de sustentabilidade”.