07.08.2025 | ABIFER | ABIFER News
Fonte: FGV Transportes Por José Eduardo Castello Branco* Marcus Quintella**
ESTRUTURAÇÃO DO ARTIGO
Este artigo está dividido em três partes, em razão da complexidade e abrangência do tema, a saber:
O MERCADO DE CARGAS DOMÉSTICO E AS FERROVIAS
O MDC-F não é pujante como o mercado de exportação de produtos agrícolas e de minérios. Pesquisa junto a embarcadores (Julianelli, 2016), indica que os principais óbices1, quanto à não utilização de ferrovias para transporte de seus produtos, são os indicados na Tabela 1, na qual são acrescidos comentários dos autores deste artigo.
Tabela 1: Motivos para não utilização de ferrovias pelos embarcadores
Óbices | Respondentes que indicaram o óbice | Observações pelos autores deste artigo |
1) Indisponibilidade de rotas | 59% | § Demonstra a pequena extensão da malha ferroviária operacional ante o território nacional |
2) Necessidade de elevados investimentos | 54% | § Possível exigência de aquisição de material rodante pelo embarcador, a ser ulteriormente operado pela ferrovia |
3) Redução da flexibilidade da operação | 51% | § Algo que talvez esteja ligado à frequência do serviço ferroviário ofertado e às restrições do direito de passagem e do tráfego mútuo |
4) Inexistência de terminais intermodais | 50% | § Tópico importante para o planejamento do MDC-F |
5) Custo elevado | 50% | § Tema em parte ligado à equidade concorrencial no transporte terrestre, adiante tratado |
6) Problemas no transbordo | 49% | § Item que remete à questão dos terminais intermodais |
7) Desinteresse da ferrovia no transporte | 46% | § Devido à indisponibilidade para cargas de terceiros, restrições ao tráfego mútuo, dificuldades para o direito de passagem, baixa velocidade comercial, transbordos demorados e interoperabilidade deficiente |
8) Elevado transit time | 35% | § Fruto principalmente das travessias urbanas, excesso de passagens em nível e de traçados ferroviários centenários |
Fonte: elaboração própria, com base em Julianelli (2016).
Nessa esteira, o Acórdão 2000/2024 do TCU trouxe um duro diagnóstico do sistema ferroviário brasileiro de cargas, com a constatação de sua estagnação e identificação dos seguintes entraves principais:
No documento antes citado, é dito que, em 2022, o transporte ferroviário de produtos agrícolas e minérios, sobretudo para a exportação, correspondeu, grosso modo, a 90% do total de toneladas transportadas2, restando com isso à carga geral uma movimentação marginal. Além disso, afirma o referido Acórdão, embora a malha ferroviária federal tenha alcançado a extensão nominal de 30,5 mil quilômetros, cerca de 70% das linhas (21,4 mil quilômetros) estiveram sem tráfego ou apresentaram um tráfego ferroviário baixíssimo3 em 2022, sendo consideradas como abandonadas ou subutilizadas.
Complementarmente às constatações do Acórdão citado, o próprio TCU realizou, em março de 2025, workshop4 sobre o MDC-F, que contou com a participação não só de auditores daquela corte de contas, mas também de renomados especialistas do setor ferroviário, abrangendo academia, entidades patronais e autoridades do governo federal.
A Tabela 2 mostra a síntese das proposições para ampliação do MDC-F feitas pelos diversos participantes do workshop mencionado, segundo o entendimento dos autores deste artigo.
Tabela 2: Síntese das sugestões apresentadas no workshop MDC-F
Área | Propostas de ampliação do MDC-F | Observações |
Estrutura empresarial / patronal | · Estrutura empresarial diferenciada no âmbito do operador ferroviário | · Relativamente similar à do modelo exportador agrícola e mineral |
· Organização do setor produtivo | · Voltada à MDC-F | |
Informação | · Ampliação do conjunto de informações prestadas pelos operadores ferroviários | · Para além do que consta do Anuário Estatístico e das Declarações de Rede, com inclusão de mais indicadores de desempenho, inclusive os de ordem financeira |
Legislação | · Revisão da legislação do setor ferroviário | · Revisão dos conceitos de “área de influência” e do “direito de preferência” |
· Revogação do Decreto Federal 1832/1996 | · Conflito com a questão da interoperabilidade e a importância do “direito de passagem” | |
Mecanismos de financiamento | · Aplicação no setor ferroviário dos recursos públicos nele gerados | · Outorgas, indenizações etc. |
· Conversão monetária de externalidades positivas do transporte ferroviário | · Em investimentos no próprio setor | |
· Investimento público em facilidades comuns | · Acesso portuário, terminais intermodais etc. | |
Operação (Interoperabilidade) | · Compartilhamento de vias | · Existência de diretrizes |
· Venda de capacidade ociosa para terceiros | · Agente Transportador Ferroviário de Cargas (ATF-C), ferrovias autorizadas etc. | |
Planejamento dos transportes | · Robustez e longo prazo | · Modelo reproduzível
· Inibição de planos de “governo”, com priorização dos de “estado” |
Regulação | · Diminuição do fardo regulatório | · Incremento da autorregulação |
· Eliminação / mitigação de “barreiras funcionais” nos contratos | · Ajustes em KPIs dos contratos de concessão
· Ajustes nos contratos operacionais entre operadoras (COE) · Garantia aos recursos de investidores associados · Mitigação de problemas de controle do tráfego em diferentes segmentos · Uniformização do material rodante |
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· Regulamentação do compartilhamento da capacidade de vazão | · Prevista para o Corredor Fico-Fiol | |
Subsídio | · Isenção do pedágio no transporte intermodal | · Veículos rodoviários |
Tarifação | · Liberdade tarifária no setor ferroviário | · Inexistência de pisos ou tetos |
Fonte: elaboração própria.
A QUESTÃO DA EQUIDADE CONCORRENCIAL
Introdução
Não há equidade concorrencial no transporte terrestre de mercadorias, dos pontos de vista regulatório e operacional. O transporte rodoviário desfruta de algumas vantagens competitivas relativamente ao ferroviário de cargas, como por exemplo:
Inatividade/Inexistência das Balanças Rodoviárias
A inatividade/inexistência das balanças de carga em rodovias brasileiras é notória, com diversas reportagens recentes dando conta de inúmeros acidentes provocados pelo excesso de peso em caminhões, aos quais deve se acrescentar o prematuro desgaste e ruptura do pavimento (G1, 2025a e G1, 2025b).
Na malha rodoviária federal, sob gestão do DNIT6, existiam ou estavam sendo implantados, em 2024, somente 79 postos de pesagem, como elementos centrais do Plano Nacional de Pesagem (PNP), distribuídos entre Postos Integrados Automatizados de Fiscalização – PIAF e Postos de Pesagem Mistos – PPM (DNIT, 2024).
Nas ferrovias, por outro lado, a carga máxima por eixo é rigorosamente controlada, estando os valores admitidos e praticados em cada concessionária indicados nas denominadas “declarações de rede”, disponíveis no sítio eletrônico da ANTT.
Sabe-se das dificuldades fiscais do país e, portanto, da insuficiência de recursos para o PNP. Nesse sentido, uma possível fonte de financiamento poderia ser o subsídio cruzado, no sentido aplicado às ferrovias pelo art. 25 da Lei 13.448/2017, em que é admitida a previsão de investimentos pelos concessionários em malha própria ou naquelas de interesse da administração pública.
Nessa vertente, parte dos recursos públicos de concessões rodoviárias derivados de novas outorgas ou repactuações poderiam ser canalizados para o PNP7, através de devida provisão legal; lembrando no entanto que, de acordo com Brasil (2022), como melhores práticas em concessões rodoviárias é recomendado o modelo “subsídio cruzado e PPP de aporte”, com a existência de trechos mais lucrativos e menos lucrativos, e, quando necessário, o uso de PPPs sem contraprestação continuada, apenas com aportes nos quatro primeiros anos da concessão8. Não há, portanto, referência à aplicação de recursos financeiros oriundos de uma malha rodoviária em outra do interesse da administração pública.
Estado de Conservação dos Veículos Rodoviários
Embora a previsão para início da obrigatoriedade das Inspeções Técnicas Veiculares – ITV, nos termos do CTB e da Resolução CONTRAN nº 716/17, fosse janeiro de 2020, a Deliberação nº 170/2018 desse órgão levou a Resolução citada a ser suspensa por tempo indeterminado. Os caminhões, que deveriam ser inspecionados a cada 2 anos (com algumas exceções) não o são atualmente.
Já no caso ferroviário, os contratos de prorrogação das concessões preveem a idade máxima de 40 anos para locomotivas, com a existência do indicador Idade Máxima da Frota de Locomotivas (IMFL).
Tendo os EUA como paradigma, tem-se nesse país a existência de cerca de 600 ferrovias de menor porte, denominadas Class II – Regional Lines e Class III – Shortlines (ASLRRA, 2017), que gravitam ao redor de um pequeno número de grandes ferrovias (Class I Railroads). Nas de menor porte, há um total da ordem de 3.500 locomotivas (EPA, 2022), com 40% desse total composto por locomotivas com mais de 50 anos9.
Constata-se, por oportuno, tendo-se como referência o modelo dos EUA, que a aplicação nesse país do regramento etário brasileiro significaria a completa paralização dos serviços ferroviários nas ferrovias Classes II e III, e mesmo em parte dos fluxos das Classe I, posto que em alguns casos a “first mile” e a “last mile” dos mesmos são feitos pelas ferrovias menores.
Mais ainda, nas ferrovias de carga, os acidentes são rigorosamente monitorados pela ANTT, segundo regramento estabelecido nos contratos de concessão, com eventual aplicação de multa caso o indicador esteja acima de um dado patamar. Nas rodovias, não há controle do mau estado dos caminhões e dos acidentes daí originados.
Em síntese, não só não há equidade concorrencial entre os modos ferroviários e rodoviário, no que respeita ao estado de conservação dos veículos e dos acidentes, como há, no caso ferroviário, questões de idade máxima de locomotivas em total dissonância com o que ocorre nos EUA, nas centenas de ferrovias Classes II e III.
Rateio do Capex e do Opex das Rodovias Pedagiadas
As rodovias pedagiadas têm, por óbvio, seus valores de Capex e de Opex cobertos pelas tarifas de acesso cobradas aos usuários. Os caminhões, contudo, apesar de pagarem valores de pedágio mais elevados que os automóveis, em função de possuírem maior número de eixos, respondem apenas em parte pela cobertura de investimentos e de custeio dessas rodovias, diferentemente das ferrovias que arcam com a integralidade desses gastos.
A título de exemplificação, tem-se o caso dos recentes estudos de demanda da BR-040, trecho entre Juiz de Fora e Belo Horizonte, em Minas Gerais, em que o volume diário de automóveis, sentido bidirecional, no ponto de contagem P1, em dias úteis, é de 6 a 12 vezes superior ao volume de caminhões médios e pesados, conforme mostrado na Figura 1 (INFRA, 2023). Dessa maneira, partindo-se do princípio de que a cobrança é por eixo e que a média dos caminhões possui 3 eixos (a grande maioria dos caminhões é leve), tem-se um valor arrecadatório diário equivalente a 54.000 eixos para os caminhões (18.000 caminhões/dia x 3 eixos), e o dobro disso pago pelos automóveis (110.000 veículos/dia), demonstrando claramente que o transporte de carga não é responsável pela maior parte da cobertura dos gastos de Capex e de Opex nas rodovias pedagiadas.
Fonte: INFRA (2023).
Figura 1: Recente contagem de tráfego na BR-040
Além disso, o conceito de Eixos Equivalentes de Carga (EEC) é fundamental na mecânica dos pavimentos. Ele serve para quantificar o dano que diferentes veículos causam ao pavimento, comparando-os a um eixo-padrão de referência. Esse eixo-padrão é geralmente definido como um eixo simples com rodas duplas carregando 8,2 toneladas (ou 80 kN), com a transformação de todo o tráfego previsto em um número equivalente de passagens desse eixo-padrão, para efeito de dimensionamento e análise da durabilidade do pavimento. Considerado o fato de que a degradação do pavimento ocorre de maneira exponencial com o aumento do peso por eixo, tem-se que um eixo de caminhão pesado pode causar o mesmo desgaste que um enorme número de automóveis, e mesmo assim são estes que sustentam grande parte dos gastos da rodovia pedagiada.
Tarifação do Transporte
As ferrovias têm suas tarifas reguladas desde o tempo em que esse modo de transporte era predominante, a isso se somando o fato de que o transporte ferroviário é considerado serviço público, e o processo de concessionamento daí derivado deve, dentre outros critérios, obedecer ao princípio da modicidade tarifária (Lei Federal 8.987/1995).
Essa conceituação, ao ver dos autores, atualmente não faz mais sentido para o transporte ferroviário de cargas, posto que no modo concorrente (e prevalecente, que é o rodoviário) não há qualquer limitação ao teto tarifário. Ressalte-se, por oportuno, que a questão do transporte urbano sobre trilhos é outra vertente, esta sim envolvendo regime jurídico específico, com exigibilidade de princípios como continuidade, universalidade, eficiência e modicidade tarifária.
De outro lado, e tomando-se novamente o exemplo dos EUA, tem-se nesse país que a desregulamentação do setor ferroviário pelo Stagger´s Act de 1980, no qual se inclui a liberdade tarifária, foi extremamente benéfica para o setor, que, naquela oportunidade, tinha várias empresas ferroviárias em estado falimentar, como a Penn Central10, fruto não só da intensa competição imposta pelo modo rodoviário, como pela rígida regulação imposta pela Interstate Commerce Commission (ICC), que impedia que as empresas ferroviárias ajustassem tarifas ou descontinuassem ramais deficitários.
Mais ainda, atualmente nos EUA, as grandes ferrovias praticam a denominada tarifação por Ramsey, em que o preço é inversamente proporcional à elasticidade-preço da demanda, o que numa linguagem mais simples significa um princípio de precificação que permite que as operadoras estabeleçam valores mais altos para os clientes cativos e mais baixos para os clientes que possam migrar mais facilmente para o caminhão.
Isso não quer dizer que nos EUA não haja proteção aos clientes cativos frente a tarifas abusivas. O Surface Transportation Board – STB, frente a isso, desenvolveu metodologias para avaliar eventual abusividade, denominadas (Intervistas, 2016):
Assim, não se trata de propor absoluta liberdade tarifária para as ferrovias de carga brasileiras, mas sim a possiblidade da tarifação por Ramsey e o necessário estabelecimento, pela ANTT, de racional metodológico para coibir eventual abuso tarifário.
CONCLUSÕES – Parte I
Complementarmente às sugestões formuladas no workshop antes mencionado e listadas na Tabela 2, retro, os autores sugerem para o aprimoramento do MDC-F, no que respeita à equidade concorrencial (Parte I do artigo):
* José Eduardo Castello Branco é engenheiro civil, M. Sc. em mecânica dos solos (Coppe/UFRJ) e D. Sc. em engenharia de transportes (Coppe/UFRJ).
** Marcus Quintella (Marcus Vinicius Quintella Cury) é engenheiro civil, M. Sc. em transportes (IME) e D. Sc. em engenharia de produção (Coppe/UFRJ).
Este artigo expressa a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião institucional da FGV e da ABIFER.