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Companhia do Metrô, uma visão atual de quem a viu nascer

28.02.2020 | | Notícias do Mercado

Por Peter Ludwig Alouche*

Neste depoimento, não tenho nenhuma pretensão de analisar a realidade atual da Companhia do Metrô que conheci há mais de 45 anos. Nem isso seria possível porque já vai fazer quase dez anos que deixei a empresa e meus contatos com meus amigos metroviários, embora constantes, não têm sido tão profundos. Meu objetivo é tão somente mostrar uma visão da empresa, mesmo opaca, de quem está de longe, verificando os desafios, as conquistas e as decepções que têm atingido o Metrô ao longo da sua história. Também não quero de modo algum fazer uma análise saudosista de um tempo que se foi e não volta mais. Minha visão poderá estar distorcida, mas meus elogios serão sinceros e minhas eventuais críticas, algumas duras e talvez sem fundamentos, talvez sejam frutos do ideal de Companhia que sempre guardei no meu espírito e que poderão servir, quem sabe, para a empresa corrigir a imagem que projeta para a sociedade.

Assim, gostaria de fazer, com humildade e sem medo, uma reflexão sobre as dificuldades que tenho notado no nosso Metrô e, por que não dizer, sobre aparentes “erros” que, num empreendimento da envergadura do Metrô, foram eventualmente cometidos pelas diferentes gestões responsáveis pela empresa. Quero ressaltar que muitos desses “erros” foram frutos de decisões que não estavam na mão dos metroviários, decisões às vezes políticas que o Metrô não tinha como contestar.

Nesses 50 anos de vida do Metrô, muita coisa mudou, os metroviários mudaram, uns envelheceram, alguns saíram seja por vontade própria, com ou sem PDV, outros se aposentaram e há, infelizmente os que já partiram para a eternidade. E nessas mudanças noto que muita coisa progrediu para melhor, mas outras regrediram e muito.

Quero logo afirmar que tais dificuldades e erros, não impediram que o Metrô de São Paulo se tornasse e continue sendo uma obra de total sucesso e que os que dele participaram desde seus primórdios ou que estão hoje à sua frente podem se orgulhar de ter edificado em São Paulo, um sistema de transporte de Primeiro Mundo, vital para os paulistanos, admirado e respeitado pelo Brasil afora e por todos os que o conheceram vindos de todas as partes.

De fato, a excelência do serviço que presta o Metrô à cidade, pode ser medido pela evidência dos seus dados: A rede do Metrô em operação é composta por seis linhas, totalizando 97,1 km de extensão e 86 estações, por onde passam mais de 5 milhões de passageiros diariamente, coisa ímpar no mundo. Está integrada à CPTM e aos outros modais de transporte de São Paulo. A Companhia estatal é responsável pela operação das linhas 1-Azul, 2-Verde, 3-Vermelha e do monotrilho da Linha 15-Prata, por onde passam 4 milhões de passageiros diariamente. A Linha 4-Amarela é operada pela Via Quatro. A Linha 5-Lilás operada em regime de concessão pela Via Mobilidade. Um total sucesso.

Face a esse sucesso, me pergunto, o que mudou do Metrô que conheci décadas atrás? Erramos e se erramos, onde erramos e como poderia ter sido melhor?

Uma constatação que se pode notar com clareza, é que, ao longo do tempo, não foi possível recriar dentro empresa, ou fora dela, aquela equipe multidisciplinar, de altíssimo nível, que se formou no início do Metrô, formada por técnicos de visão, corajosos e competentes, que se preocupavam em enfrentar os grandes desafios das linhas em construção, mas sempre mantinham uma visão do futuro. Em termos urbanísticos, a cidade crescia conduzida pelas linhas do Metrô. O Metrô não era uma ilha isolada de excelência dentro da cidade. Em termos técnicos, a engenharia nacional se desenvolvia levada pelo Metrô. As empresas de consultoria, inexistentes no setor metroferroviário, floresceram tornando o país, numa certa época, autossuficiente. Em termos tecnológicos, o Metrô apostava na inovação. Criava novos produtos e novos fornecedores. A indústria de material rodante, inexistente na época se expandiu a ponto de começar a exportar trens e materiais para outros países. Tudo o que se fazia no Metrô tinha um significado importante e visível para o desenvolvimento de São Paulo e do País.

Havia na Companhia entre todos os metroviários, um entusiasmo ímpar, um dinamismo frenético, um orgulho de trabalhar no Metrô. Os metroviários comemoravam qualquer etapa vencida e se reuniam em debates calorosos quando alguma falha acontecia. Tudo era decidido com rapidez e as decisões fluíam, muitas vezes, de baixo para cima. Havia uma confiança e abertura total entre os técnicos, independentemente de sua hierarquia e de sua função. Todos vestiam a “camisa” do Metrô.

Esse quadro certamente mudou. As equipes do Metrô trabalham cumprindo bem suas obrigações, mas muitas vezes sem aquele dinamismo de outrora. As informações técnicas não fluem com rapidez. Há uma certa lentidão e, por que não dizer, uma certa apatia, se formos fazer a comparação com o passado. As viagens que empreendem certos técnicos ao exterior, seja para conhecer outros sistemas, seja para participar de reuniões internacionais da UITP, ALAMYS ou CoMET, não são relatadas publicamente à Companhia, à Academia e aos técnicos de outras empresas do setor, como se fazia no meu tempo. Em nome da confidencialidade, coisa que não compreendo nos tempos atuais, as informações são guardadas com sigilo. Certamente há razões para isso. Quem trabalha numa empresa pública hoje deve ser cauteloso para não cometer algum deslize que o leve a ser acusado, injustamente, por órgãos de controle, como o Ministério Público.

Outra constatação é que a cidade e o Metrô têm crescido quase que independentemente e o planejamento do sistema de transporte da cidade se faz como se o Metrô não existisse. Algumas empresas de engenharia, antes pujantes, faliram ou desapareceram. Muita indústria do setor não suportou a falta de encomendas e fechou suas portas. Não se fabricam mais trilhos ferroviários no Brasil. Um absurdo. É claro que tudo tem seus motivos. Alguns dirão, que foi a falta de encomendas causada pelo ritmo lento de expansão das linhas. Outros vão culpar a importação de material rodante mais barata. Sim, mas há algo mais. No meu entender o Metrô não deu o apoio decisivo que antigamente dava às empresas nacionais e à tecnologia brasileira para sua sobrevivência e crescimento. No seu planejamento de implantação de linhas e na especificação dos seus equipamentos, segue rigorosamente as leis das concorrenciais, para não correr nenhum risco.

Outro fato que pude notar na empresa nos últimos anos, é uma certa falta de planejamento coordenado, com muitos atrasos nas obras e o não cumprimento dos prazos estabelecidos. Quando a Companhia foi confrontada com o desafio da implantação de muitas linhas ao mesmo tempo (no meu entender um erro) e que coincidiu com a adoção de novas tecnologias, como o monotrilho, o CBTC e as portas de plataforma, as metas foram difíceis de serem atingidas. A empresa se viu então comprimida, por datas políticas e confrontada com um certo despreparo, tanto em termos de recursos humanos quanto de planejamento. A atitude que tenho notado por parte de alguns técnicos e responsáveis, todos profissionais competentes e que respeito muito, foi de preocupação com o curto prazo. Envolvidos em muitas atividades e preocupados em atender os prazos estabelecidos, geralmente exíguos, não têm tido a tranquilidade necessária para se aprofundarem, às vezes, em algumas questões técnicas complexas e nem recorreram a consultorias especializadas, nacionais ou internacionais, como se fazia no início do Metrô.

Apesar de ter sido vitoriosa na adoção de uma tecnologia muito avançada em alguns de seus novos projetos, como o UTO na Linha 4-Amarela, é notório que houve ao longo dos anos, uma certa falta de atualização das equipes do Metrô quanto aos métodos usados, o que tem se traduzido, muitas vezes, em editais e especificações pouco flexíveis e com uma tendência muito conservadora. O acúmulo de novos projetos de linhas, obrigou a empresa a contratar fora dela, projetos, supervisões e gerenciamentos que, no passado, sempre foram da sua responsabilidade.

Não posso deixar de confessar que tenho uma certa preocupação no que vem acontecendo nas últimas escolhas tecnológicas e na especificação de novos projetos, que têm surgido não só no Metrô, mas também nos outros empreendimentos de São Paulo e do Brasil inteiro. De alguns anos para cá, não se abrem mais debates públicos sobre as escolhas tecnológicas e o direcionamento dos projetos, tanto a nível macro – das linhas – quanto a nível micro – dos sistemas e equipamentos. Estou convencido de que faltou, por exemplo, um debate público e sincero na adoção dos sistemas de transporte, BRT, VLT e Monotrilhos.

Os monotrilhos das linhas 15-Prata e 17-Ouro, são um exemplo dessa falta de debates e discussão de alternativas. Os metroviários não tiveram oportunidade de analisar com profundidade os prós e os contras da tecnologia dos monotrilhos. Foi praticamente uma decisão política que o setor metroferroviário teve que aceitar. A consequência disso foi que a linha 15 só começou a operar com muito atraso e operou graças à competência e esforço dos técnicos do Metrô e graças à atitude construtiva da fornecedora. A linha 17 teve menos sorte. O fornecedor de material rodante não era confiável. Os construtores tiveram que ser substituídos e o projeto que previa ir até Paraisópolis, teve que parar na Marginal do Pinheiros.

A falta de recrutamento de técnicos por longos anos e a não existência de uma política clara de salvaguarda e desenvolvimento da tecnologia, internamente à empresa, tornaram-se uma ameaça à sobrevivência do precioso acervo tecnológico acumulado por 50 anos. Talvez por isso e para se contrapor à possibilidade de perda de seu imenso patrimônio de conhecimento acumulado por anos e anos de projetos, obras, manutenção e operação, que o Metrô modificou este ano seu objeto social criando o METRÔ CONSULTING e passando a prever atividades de consultoria e venda de serviços. Essa consultoria o Metrô já prestou nas décadas de 1980, 90 e 2000, para várias operadoras de metrôs no Brasil e no mundo (Bagdá, Caracas, Medellin, Recife, Brasília…) mas aproveitava um pessoal interno à própria empresa, envolvido nas suas tarefas normais.

O Metrô se propõe hoje a institucionalizar e comercializar direta ou indiretamente sua tecnologia, prestando serviços de consultoria e apoio a outros metrôs do Brasil e do exterior, através de acordos e contratos de consultoria. Só posso elogiar essa iniciativa, porque além de tudo, ela vai impulsionar a Companhia a novos desafios e forçará os técnicos do Metrô a uma atualização tecnológica obrigatória, dando-lhes também um ânimo e um entusiasmo que se perderam ao longo do tempo. Minha única observação é que ainda não foi criada, pelo que me consta, a equipe multidisciplinar básica, de alto nível, exclusiva, recrutada interna e externamente à empresa, formada por técnicos experientes e competentes.

Enfim, dentro de minha visão atual da Companhia, não posso deixar de mencionar o processo acelerado de concessão das linhas de Metrô, dentro da política de privatização do governo paulista que inclui também as linhas da CPTM e do Trem Intercidades. Esta política de concessões começou com a Linha 4-Amarela do Metrô, hoje nas mãos da concessionária ViaQuatro. Foi feita a concessão da Linha 6-Laranja através de uma PPP integral, uma concessão que está suspensa à procura de uma solução viável. A Linha 5-Lilás e a Linha 17-Ouro já foram concedidas ao Consórcio ViaMobilidade, e foi anunciada a concessão do monotrilho da Linha 15-Prata e das linhas 8-Diamente e 9-Esmeralda da CPTM.

Face a este processo acelerado de concessão das linhas de Metrô, noto uma falta de iniciativa firme por parte da Companhia do Metrô, para garantir a si própria a continuidade do planejamento e controle da expansão da Rede Metroviária. No meu entender, só o Metrô estatal pode ditar a tecnologia e as especificações técnicas das linhas futuras, como também monitorar e controlar a qualidade de serviço das atuais linhas em concessão.

Por outro lado, as concessões são feitas sem que houvesse sido criada uma Agência Reguladora competente e independente do Transporte Metroferroviário e que teria como função garantir a qualidade de serviço estabelecida nos contratos de conces­são. Para mim, incompreensível. Por fim, no meu entender também faltou nos contratos de concessão a criação de um organismo, técnico, prático, ágil para atuar em caso de uma anormalidade no sistema, para mitigar de imediato, o evento ocorrido em qualquer linha do Metrô ou da CPTM.

O processo de concessão, foi, sob o meu ponto de vista, uma divisão da empresa em partes independentes, que interagem com uma certa dificuldade. Mas para o usuário o operador é único e chama-se Metrô. A mídia e a população hoje mais consciente dos seus direitos e mais participativa nas suas críticas, têm sido uma fonte de cobranças ao Metrô, nos mais variados assuntos. As redes sociais compartilham “on-line” qualquer dúvida que surge, qualquer erro que se constata, seja ele do Metrô estatal ou das concessionárias.

Por fim e talvez pelo amor que nutro pela Companhia quero confessar que meu sentimento hoje é de muita preocupação pelo futuro do nosso Metrô. Sinto que a empresa não tem mais a solidez dos tempos passados. Não sei se foram as concessões das linhas, no meu entender mal planejadas, não sei se foram as decisões gerenciais nos últimos anos que estiveram muito mais na mão da Secretaria dos Transportes Metropolitanos do que na mão da Diretoria do Metrô e dos metroviários. O fato é que sinto hoje que a Companhia do Metrô transfigurou-se perdendo infelizmente muito de sua presença e brilho na cidade. Apesar de seu serviço ao usuário continuar a ser um dos mais eficientes do mundo, me dá a impressão que o Metrô, que eu vi nascer, perdeu um pouco de sua alma.

 

*Peter Ludwig Alouche – engenheiro eletricista, formado no Mackenzie, pós-graduado para mestrado em Sistemas de Potência na Poli-USP, com diversos cursos de especialização em transporte público em universidades e entidades do Brasil, Europa e Japão. Foi durante 35 anos metroviário, assessor técnico da presidência do Metrô de São Paulo para Projetos Estratégicos, representante da Companhia na UITP e no CoMET. Foi professor titular de linhas de transmissão na Escolas de Engenharia da FAAP e do Mackenzie. Hoje é Consultor independente de transporte nas áreas de tecnologia. Tem inúmeros artigos publicados em revistas especializadas do Brasil e do exterior.